RONDA
O toque do sino
o latido do cão
o ruído de passos.
É tudo tempo pretérito
que conjugaremos até a morte?
Que noite é essa
que amanhã reconheceremos?
Que corpo é esse
que não é o nosso?
Em que pensamos nessa madrugada
de sombras que se arrastam até o futuro
onde logo mais estaremos e não estaremos?
Quem somos nós aqui
que já não recordamos?
Que tempo passa e não passa
ó almas que não dormem nunca?
À REVELIA
Porque o amor nasce à revelia
e atravessa o silêncio dos cristais
algum risco lá fora vai correr
a vidraça fumarada deste dia.
Porque o amor nasce à revelia
vezes sempre, sempre
sempre e muito mais,
coberto de fuligem o tempo para,
abre bem os olhos para ver
o amor nascer à revelia
do ontem, do hoje, do agora.
Depois, cansado, se entedia
ou lembra que é tempo,
e vai-se embora.
A HART CRANE
This fabulous shadow
only the sea keeps.
Acima da linha d’água
o homem delineia seu intento submersível.
Na manhã em que o obscurecer do sol
não é um aviso de eclipse
quase tudo é invisível:
Náufragos com suas respostas de silêncio
para ouvidos de espuma
Havana trezentas milhas ao norte
orlas, calafrios e lembranças
de salgueiros melodiando sons.
Em surdina o homem desveste seu casaco.
Abaixo da linha d’água
algas se movimentam
polvos nascem transparentes
peixes espreitam sob rochas:
o mar inteiro aguarda
a luz que desce.
A T.S. ELIOT
O portão
com gemidos de vento
contorce dobradiças
em lascivo lamento.
A névoa,
forma não corpórea da manhã,
se desvanece
roçando o muro
onde o orvalho
lava com a língua
o rubro da romã.
Sobre LENILDE FREITAS:
Nascida em Campina Grande (PB), Lenilde Freitas formou-se em Letras em Recife e fez especializações em poesia na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. Estreou em livro no ano de 1987, quando publicou as coletâneas de poemas Desvios e Esboço de Eva.Seguiu-se Cercanias (1989), Espaço Neutro (1991), Tributos (1994) e Grãos na Eira (2001). Em 2009 Lenilde fez uma incursão na literatura para crianças com A Casa Encantada. No ano seguinte, publlica uma coletânea de seus trabalhos anteriores sob o título de A Corça no Campo.
A página “poesia.net” de Carlos Machado,neste Dia da Mulher, destacou a obra dessa belíssima poeta brasileira publicando uma seleção de poemas do livro A Corça no Campo e o poema “A Hart Crane”, do livro Tributos – uma homenagem ao jovem poeta modernista americano Hart Crane (1899-1932) que se atirou ao mar numa viagem do México para Nova York. O “poesia.net” incluiu também dois outros tributos a poetas: o americano T.S. Eliot e o pernambucano Carlos Pena Filho.No entanto,o Comunidades publica o tributo ao T.S.Eliot.
Escreve Carlos Machado que para o crítico literário Antonio Candido, a poesia de Lenilde Freitas “tem um dos dons essenciais da modernidade: dizer muita coisa por meio de poucas, quase nenhumas palavras, organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na verdade multiplica suas possibilidades.” Enfatiza que o mestre Antonio Candido põe em evidência um aspecto central desse trabalho poético ,pois “com pinceladas impressionistas, Lenilde consegue dizer o que aparentemente não está nas palavras. ‘O toque do sino / o latido do cão / o ruído de passos.’ (“Ronda”) Estas três linhas soltas, desprovidas de verbos, dão ao leitor a oportunidade de imaginar os nexos existentes entre elas.”
Na canção “À Revelia” tem-se um exemplo cristalino de outro olhar mais amplo. Uma canção suave, macia, sem incêndios. Como diz o professor Lourival Holanda, da UFPE, no prefácio de A Corça no Campo,citado por Carlos Machado, a poesia de Lenilde é “como uma cantata em surdina”.
Fonte de Referência:
1.poesia.net -Número 275 – Ano 10 de 7/03/2012
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012
2. Bibliografia: Lenilde Freitas
• “A Hart Crane”
Tributos
Editora Giordano, São Paulo, 1994
• Demais poemas
A Corça no Campo
Ed. da autora, Recife, 2010