Capas que embrulharam peixes e fizeram história
Diz-se, com bom humor, que o jornal do dia anterior só serve para embrulhar peixe. Um número incalculável de peixarias, em toda Santa Catarina e no Brasil, corrobora a tese.
Papel-jornal também é ótimo para limpar vidros e espelhos, para acender fogueiras ou incandescer o carvão nas churrasqueiras, sem falar em uma incrível diversidade de aplicações, inclusive em peças de artesanato. Se nada disso é mentira, igualmente é verdade que jornais também servem para contar histórias – tanto de pessoas famosas quanto de ilustres anônimos – para narrar pequenos causos, defender grandes causas, tratar de fenômenos climáticos a avanços tecnológicos, de acontecimentos dramáticos à rotina diária de uma comunidade. Alegrias e tristezas de várias gerações foram impressas, dia após dia, nas páginas dos jornais.
Em Santa Catarina, o jornal O Estado registrou por quase um século a “história à queima-roupa”. Foram 93 anos circulando na capital catarinense e, mais tarde, por todas as regiões. No auge, nos anos 70, chegou a ter 32 mil assinantes e venda avulsa de dez mil exemplares, além de 14 sucursais espalhadas de Sul a Norte, de Leste a Oeste. Várias gerações dos melhores profissionais ali viveram suas inspirações e transpirações diárias.
Um jornal, basicamente, é papel e tinta. Mas é também uma rede de relações que põe em marcha um batalhão de profissionais: jornalistas, diagramadores, revisores, fotógrafos, redatores, compositores, motoristas, plantonistas, gráficos, telefonistas, vendedores, corretores, gerentes, arquivistas, laboratoristas, administradores – um considerável exército de trabalhadores com suas respectivas especialidades. Um trabalho que recomeça, todos os dias, logo após ser impresso o último exemplar a ser entregue em banca ou residência.
Tão logo um jornal chega às mãos dos leitores e leitoras com as últimas notícias, um novo já começa a ser pensado e elaborado. Repórteres saem novamente a campo para garimpar as últimas novidades, ouvir denúncias, reclamações, descrever a rotina e o inusitado presentes na vida dos catarinenses. Sem perder de vista o que acontece também no Brasil e no mundo.
O Estado
Um jornal é também a história viva de um povo, suas conquistas e alegrias, suas tristezas e tragédias. É, ainda, registro da evolução tecnológica; no começo, com suas precárias fontes de impressão, fotos quase inexistentes, depois estampadas em matizes de cinzas quase indistinguíveis, até explodir nas cores cada vez mais fidedignas das páginas atuais. Das radiofotos às fotos digitais, um caminho de novidades incorporadas à indústria da notícia. Do vagaroso telex ao instantâneo envio de texto e imagem numa fração de segundo, tudo se soma, num imenso mosaico, para compor, do chumbo quente das linotipos ao frio sistema de composição offset, o retrato de uma época e suas transformações.
Quem viveu essa rotina das redações e seus setores complementares guarda no corpo, na mente e na alma a sensação de ter feito parte e de ter ajudado a contar a interminável história dos dias e noites, frios e quentes, chuvosos e secos, estação após estação, como quem embarca no trem da História.
O século XX testemunhou duas grandes guerras mundiais e muitas revoluções: políticas, sociais, comportamentais e tecnológicas. Foi o século em que o ser humano deu o seu maior salto, com invenções que desafiaram a imaginação. Colocamos o pé em outro planeta e quase destruímos o nosso, derrubando florestas e poluindo terra, água e ar.
Nessa aventura em que o ser humano se reinventa, entre as possibilidades da catástrofe à redenção, páginas e páginas foram e continuam sendo desenhadas.
Esse século XX, em Santa Catarina, no Brasil e no mundo, ficou registrado nas páginas de O Estado. De 1915 a 2008 o jornal imprimiu 29.258 edições. Uma inestimável coleção que, no entanto, não foi preservada como merecia. Milhares de páginas do frágil papel-jornal encontram-se bastante danificadas nas poucas bibliotecas em que foram arquivadas.
Não foi diferente na Biblioteca Pública do Estado que, se tem o mérito de possuir a coleção completa, somente agora começará, finalmente, a documentar em registro digital um volume incalculável de informações que facilitarão a pesquisa de historiadores e estudiosos interessados em conhecer, em fatos e fotos, o dia a dia dos catarinenses, brasileiros e cidadãos do mundo, impressos no jornal O Estado.
Há cinco anos, um grupo de ex-profissionais de O Estado deu início a uma confraternização que tem se repetido anualmente. Nesta quinta edição, no ano em que O Estado completaria cem anos, os integrantes da Comissão Organizadora, composta por 13 pessoas de formações heterogêneas, lançaram-se à pesquisa de todas as capas “do mais antigo”, como era conhecido o jornal. Levando-se em consideração, principalmente, aspectos históricos, curiosos, tecnológicos e gráficos, chegou-se a uma seleção de cem capas que contam um pouco da história de O Estado, e também de Santa Catarina, do Brasil e do mundo.
Com o apoio da Editora Unisul, o livro publica uma amostra dessas páginas que, além de terem embrulhado muito peixe e garantido o pão nosso de cada dia de milhares de trabalhadores, registraram, com tinta e suor, o sonho de fazer Jornalismo. E História!
Por Celso Vicenzi
Celso Vicenzi é ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia, com passagens por rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Lançou "Gol é Orgasmo", com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. É colunista do portal "Outras Palavras" e do blog Nota de Rodapé, Escreve humor no Jornal de Barreiros e no twitter @celso_vicenzi.
Um dos Editores do Livro "Cem Capas Do O Estado", Wd.Unisul,2015, comemortivo do Centenário do Jornal O Estado, "o mais antigo"
Fonte: http://www.carosouvintes.org.br/capas-que-embrulharam-peixes-e-fizeram-historia/