A GALOPE NUMA NOITE DE BÚZIOS (INÉDITOS)
O mar será sempre teu, por mais que a maré se revolva. Assim queiras mergulhar às lapas, de saco atado à cintura, para colher as algas que ficaram suspensas no sonho.
Cuidado, não rasgues o pulso num bico de craca. As feridas de água salgada levam séculos a sarar. Ardem em silêncio, latejam noites inteiras, choram por dentro da alma, sangrando de dor inconsolável.
Não te assustes se o vires ficar encrespado pela madrugada. É apenas uma manifestação de adolescente inconsolado. Um anseio de quem já não sabe a cor do sexo quando se espreguiça, o calor de uma boca a refrescar-se no beijo.
Embriagado, não desiste de perseguir a luz intensa de um sorriso, cujo nome a memória converteu em saudade.
Uma saudade que não se apaga com a goma do tempo, não se raspa nem tritura entre a língua do desespero.
A saudade sou eu em carne viva, suplicante, à procura da sombra que já fui.
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As estrelas podem testemunhar: fui eu quem mandou silenciar o vento e embalar os bramidos da chuva. Domei o relincho agreste dos cavalos, o galope desordenado das gazelas, a crispação dos pinheiros.
Em noite de búzios, anseio entender a mimica dos mortos, o murmúrio das almas a latejar de sede no púcaro do eterno descanso.
Com eles, quero decifrar o silêncio da areia a escapar-se por entre os olhos, como se os dedos fossem a peneira por onde passaram todas as alegrias que o destino desviou do meu caminho.
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Numa onda de prazer, desfruto ao ínfimo pormenor a minha intimidade, até então desconhecida. Que loucura, esta infidelidade trespassando o meu eu despudorado a aproveitar-se de mim, como se fosse uma virgem oferecida.
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a beleza da luz revela-se no encontro com a penumbra
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o aprendiz penteia as palavras como se fosse dia de procissão
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o azedume das sílabas torna os dentes careados
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só os lábios conseguem unir caminhos paralelos
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se o corpo pensa em capitular obriga a mente a recapitular
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aprende a ler a cegueira para que se faça luz na palavra
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seios adolescentes respiram o balanço da luz pela madrugada
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sol que se deixa tapar pela peneira não merece ser astro-rei
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lavar os dentes à palavra afasta o escorbuto da conversa
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a alfabetização das traças originou o aparecimento do livro branco
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soprar o lume com uma palhinha faz cócegas na labareda
uva de casca fina dá vinho encorpado pela madrugada
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corpo coberto de silogismos não serve de pastagem à língua
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a função obscena do poeta é deixar a metáfora a suspirar