Carta de Eça a Fradique Mendes
acerca das reformas sociais em Portugal
(FICÇÃO)
Meu caro Fradique: certamente estarás lembrado da aposta que fizeste no Martinho. Por conta disso acabas de perder uma garrafa do melhor cognac, que convém não esqueças na próxima vez que vieres a Lisboa. Teimaste, e tanto teimaste que apostaste, que o António e o João não se casariam nunca. Pois acabam de se casar. Com quem, quererás saber de pronto. Sossega, que eu não te deixarei por muito tempo a coçar a pulga. Se é voz do povo que não há João sem a sua Joana, do mesmo modo se dirá que há sempre uma Antónia para um qualquer António. A maravilha maior, meu caro, o espanto, a anormalidade, o pasmo é que a Joana deste João se chama António e a Antónia deste António é de sua graça João. Sim, casaram-se um com o outro. Como!?… De fraque e flor na lapela. Razão para muito folgar como nem sequer imaginas, porque uma primeira vez é sempre ocasião solene, tanto importando tratar-se de fruta temporã como de baile de debutantes. E este casório foi, no género, uma estreia em Portugal. Pouco me importa a moralidade, ou falta dela, por que se irão juntando eles com eles e elas com elas. Desdenho desses julgamentos alheios, e é para mim indiferente que tal nova forma de acasalamento tenha o “placet” do Estado ou a “excommunione” de Roma, a quem, neste ponto, me vejo tentado a dar razão. O que me fere o sentimento é o não cuidar, ou mal cuidar, da Língua Portuguesa, que sempre foi feita pelo povo e pelos escritores de livros e jornais. Mas, enquanto as suas mudanças foram demorando séculos a acontecer, agora, de um dia para o outro, as Cortes decretaram a extinção do significado de uma das nossas palavras mais respeitáveis. Porque suas excelências não inventaram um sacramento profano, apenas deram, por decreto, um significado novo ao substantivo casamento. Meu estimado amigo, não sou de rezas nem de beatices, bem sabes, mas julgo que um pouco de Deus não faria mal a esta gente, embora tenha a convicção de que um descrente, sendo culto e educado, pode ser um cidadão tão exemplar como o mais santo dos santos. O pior foi este governo ter-se tornado ateu antes de ser culto e educado. Se fosse culto, não julgaria que escrever leis é governar; se fosse educado, não se arrogaria o direito de fazer dos corredores do poder uma imensa e lamentável Travessa do Fala-Só. E já consta nos círculos de má-língua lisboeta – os do costume – que o presidente do ministério, que defendeu em pessoa a lei nas Cortes, prepara uma lei em que seja reconhecido o direito de quem quiser se casar consigo mesmo. A isso se há-de chamar casamento unipessoal.
Disse Michelet, referindo-se àquele vendaval ético que é o Antero: “Se em Portugal restam quatro ou cinco homens como o autor das Odes Modernas, Portugal continua a ser um grande país vivo.” A desgraça, Fradique, é que, tal como Abraão não encontrou em Sodoma dez justos que aplacassem a ira divina, nem com lanterna à luz do meio-dia o bom do Michelet contaria entre nós metade disso. A que se deve este despautério, esta tontice engalanada, este deserto de ideias num governo tão cheio de cabeças? Acusa-se Lisboa de ser a culpada dos males do país, mas que é Lisboa ou quem é Lisboa? Lisboa é a província à procura de um lugar ao sol. Não há contabilista de Trás-os-Montes que não sonhe com uma carreira na capital, se possível chegando a ministro e talvez bancário. Não há regedor do Algarve que não sofra o desvario de julgar que um dia pode ser presidente do ministério. Nem há poeta de aldeia que não teime em chegar a bardo, de bebedeira e rima, nas tabernas de bairro e nas redacções dos jornais de Lisboa. A única condição é haver quem os promova. O resto é o trivial nestes avatares da vida. Porque, em Lisboa, primeiro se faz o nome e depois a obra.
É certo que da maior parte desta gente se poderia dizer o que disseste do comendador Pinho em carta a Madame de Jouarre “É o comendador Pinho um cidadão inútil? Não, certamente. Dum Pinho nunca pode sair ideia ou acto, afirmação ou negação que desmanche a paz do Estado.” O pior, meu caro Fradique, é que há Pinhos desses que sobem à glória efémera de se julgarem o Estado.
Daniel de Sá