CARTA REGISTADA
…Havia o infinito e o mar sobre nós, com sol nublado, e dei-te uma pedra negra que rolou do coração, para dentro do ano novo.
Estavas de óculos cor-de-pedra, sentada no ano velho, como se eu tivesse regressado das lavadias brancas, com o teu véu cansado de noiva.
Havia namorados que namoravam, e nós no percurso, sem nos vermos, a olhar um para o outro.
Sabias a doce de mel salgado, e eu, a sal de abelha.
Dizia amor e tu amora, silvestre.
E a terra fria da mornaça de Janeiro, prescrevia o sonho a lacre de sangue fino e frio e pingos de coração, breve e magoado.
Preenchemos então o desejo, que bebi dos teus silêncios.
Deixaste-me tocar, nas tuas mãos secretas, leves e sem anéis brancos, ainda puras de tanto dar e receber.
As tuas mãos de concha, dos filhos a crescerem.
As tuas mãos esguias, das notas soltas do piano triste e adormecido.
As tuas mãos quentes, dos recantos íntimos do nosso corpo, em sabor e desvario.
As tuas mãos, que fizeram o calor do colo frio, da nossa dor no canal.
As tuas, e as minhas mãos.
Feridas.
Tomámos então, com estrangeiros, como amigos estrangeiros, um café chique da cidade em hotel da noite, das noites que gostaria de viver intensamente contigo,
e dei-te uma pedra da cor dos teus olhos pretos, do mar que me deixas, branco de mais de tantas ondas, para poder cantar outra vida …
SIDÓNIO BETTENCOURT, in:” Deserto de Todas as Chuvas “,Ed.Salamandra
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O autor Sidônio Bettencourt é natural da Ilha de São Miguel. Jornalista. Trabalha na RDP desde 1976. Realiza e apresenta diariamente o popular programa “Inter Ilhas” uma grande referência pelo serviço cultural e social que realiza por todo arquipélago. É apresentador do Programa “Atlântida” da RTP Açores,RTP Madeira e RTP Internacional.
Da sua produção literária (prosa poética e poesia) cita-se: Deserto de Todas as Chuvas, A Balada das Baleias e “Já não vem ninguém” (2011). Está presente em inúmeras publicações e antologias, no Dicionário de Autores Açorianos,integrado na exposição Escritas nos Açores Escritas no Mundo.