Cartas de Amor de Maria Amélia
Lélia Pereira Nunes
“… deu-lhe a nossa direcção e contatos e assim
cá chegou a encomenda de inúmeras cartas
de amor, guardadas durante 52 anos…”
M.A,2014
Quando há meses recebi um telefonema de uma querida amiga que vive em Windsor (CAN) fui tomada de grande surpresa. A amizade iniciada num breve e agradável convívio em Ponta Delgada não desapareceu nas andanças do tempo e nem arrefeceu a lembrança daquela mulher pequena, serena, olhos claros, brilhantes e falantes, sorriso largo, voz suave, que os anos de emigrante na América não apagaram “o sotaque corisco” da Ilha de São Miguel, seu berço natal. São daquelas amizades nascidas num instante e guardadas para sempre no lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância digam não, como na “Canção da América” do brasileiro Milton Nascimento.
A surpresa está na história que me foi entregue, a viva voz, com jeito desprendido e gentil. Dias depois, recebia uma longa e minuciosa carta postada no correio de La Salle, Ontário. Junto, um envelope amarelado, ainda selado, onde se pode ler o carimbo de postagem: “8 de Novembro de 1961,Ribeira Grande”. Nem acreditei que uma história tão linda me fora confiada de mão beijada. Ali estava um precioso achado que, por obra do acaso, caiu de paraquedas no meu colo. Senti-me como “Sophie”, a protagonista do encantador filme americano Cartas para Julieta (Letter’s to Juliet) de Gary Winick, lançado em 2010. O romântico enredo conta a história de Sophie (Amanda Seyfried) que encontra nos muros de Verona, sob o balcão de Romeu e Julieta, uma carta escrita em 1957 pela jovem Claire. Sophie responde a carta. A senhora Claire (Wanessa Redgrave), 50 anos depois, volta à Itália e sai a procura de Lorenzo (Franco Nero) seu grande amor. Com certeza, nem por sonhos, a arte imita a vida. Maria Amélia acabara de compartilhar a sua história que nada tem de ficção. É real! É a vida do jeito que ela corre no leito do destino.
Confesso que ao conhecer a incrível história de Maria Amélia fiquei atônita, corroída pela curiosidade, aturdida. Maravilhada, talvez seja a palavra certa para definir a sensação de euforia que me abraçou.
Imaginem… Alguém receber cartas de amor, um maço delas, escritas por ela própria, há 52 anos. Pois, foi exatamente isso que aconteceu. Maria Amélia recebeu lá na sua casa, em Windsor, as cartas que escrevera ao seu namorado Balthazar, o Furriel Miliciano 1506, quando estava a lutar na Guerra de Angola em 1961 – ele foi um dos tantos jovens infantes açorianos que combateu no Ultramar. A Guerra de África que se desenrolou entre 1961 e 1974 nos três teatros – Angola, Moçambique, Guiné, deixou um rastro de dez mil mortos, mais de 30 mil mutilados e um número maior de feridos. E a memória? Desconcertante, incômoda. É um vento forte que mexe com os sentimentos de uma geração que esteve na África e carrega seus cheiros e sua imagem tatuada n’alma, suas cicatrizes no corpo e na mente, ou daqueles que não machucaram a carne e não choraram a guerra colonial. Urbano Bettencourt em “De mangas e bolanhas” (in: África Frente Verso, 2012:80), vigoroso texto contaminado de África por todos os poros, faz da escrita a tela maculada, testamento iniludível da terra morena, desvendando o rastro da guerra dentro de cada um. Nas palavras de remate, a expressão de verdadeiro sentir: “Saberás, então, que esse é o teu íntimo cheiro de África, aquele que vais querer guardar para lá de tudo, mesmo quando a memória dos lugares, dos corpos e do sangue se for diluindo na espessura dos dias.”
Em respeito a essa singular historia e pelo seu maior significado, resolvi contá-la ou repartí-la.
Quase como um conto de fadas, o enredo traz a aura do romantismo e a magia das cartas de amor enviadas ao namorado no campo de batalha. Doce remédio para a dor pungente da saudade e para amenizar a solidão dos dias e noites de angústia e de esperança repartidas com o amigo – o cabo Marques Creado, companheiro de luta.
Ferido em combate, o Furriel Tavares, regressa a casa, em Ponta Delgada, nos Açores. Para trás, fica a África dilacerada, tempo de violência, o zunir das balas, o grito do massacre, o silêncio exausto da caserna, os sonhos. Para trás, esquecidas sob o travesseiro, o maço de cartas da mulher amada.
Já casados e sem perspectiva de uma vida melhor no seu Mundo-Ilha, os jovens emigraram para o Canadá, fixando residência em Windsor, Ontário. Nasceram os filhos. Vieram os netos… Na roda da vida, o tempo rodou apressado e trouxe lá do passado, 52 anos depois, as cartas de amor perdidas na Guerra da Angola. No entanto, elas estavam bem guardadas com o cabo Marques Creado que faleceu sem conseguir devolvê-las ao amigo Furriel Tavares. Contudo, antes de morrer, pediu à esposa para continuar a sua busca e não desistisse até encontrar o companheiro de farda ou sua família.
Certo dia, lá na Amadora, no continente português, Maria Isabel Creado, viúva do cabo Marques Creado, assistia a um programa na RTP quando viu divulgado, no écran, um número de telefone disponibilizado para quem desejasse localizar ex-combatentes da Guerra de Angola. Sem perder tempo, a senhora Maria Isabel discou o referido número e, ao vivo, perguntou se alguém sabia do paradeiro de Balthazar Tavares Silva, o Furriel Miliciano. Por coincidência, a açoriana Gina Resendes, amiga da família Tavares Silva, também assistia ao mesmo programa. Pronto, um breve telefonema entre as duas mulheres e, finalmente, estabelecia-se o elo perdido nas canadas do tempo.
Assim, num belo e invulgar gesto de solidariedade humana e lealdade, as cartas de amor de Maria Amélia, velhas frases que o seu coração apaixonado ditou há 52 anos, fizeram, mais uma vez, os caminhos do mar, retornando às mãos do casal – destinatário e remetente – carregadas de promessas e sonhos inundados do fulgor da juventude que o tempo tratou de salvaguardar.
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