CHAGALL
Mário T Cabral, 04 de Maio AD 2014
A obra de Chagall é exemplo irrepreensível para falar da pintura contemporânea – e da arte do nosso tempo, em geral – sem se pôr a jeito da risota cínica daqueles que defendem o velho rei nudista, não permitindo, no seu fanatismo, correções indispensáveis, em crise evidente. Isto porque o traço de Chagall permanece inequivocamente moderno, tendo sido, desde logo, considerado pelos seus pares e por todos os especialistas como originalíssimo e genial.
Sobressai de imediato a liberdade. Não é fácil um artista ser livre, ao contrário do que se possa dizer; nem se deve acreditar logo nos artistas que afirmam querer ser livres e procurar o novo. Há um lugar comum ambivalente: por um lado, procurando libertar-se do passado, para ser original, como é sua obrigação, o artista cai na escravatura aos preconceitos do seu tempo, principalmente se estes estão consignados nos manifestos da moda; por outro lado, o artista pode virar as costas à obrigação da vanguarda, que é essencial a toda a Arte, imitando o já feito, em pastiche.
Ora, Chagall não se submete a princípios tão fatais à Arte no séc. XX como o conceptualismo e a abstração – sem, contudo, ruminar o naturalismo, que pôs o freio nos artistas a partir do Renascimento. Parece ser desta dupla liberdade que emana a poesia e a graça das suas telas: como se fosse coisa de criança, como se não fosse coisa culta… ou, pura e simplesmente, como se não fosse coisa humana, no que consiste, em abono da verdade, a graça. Poucos artistas têm graça. Outro que a tem é Fra Angelico, que poderia ser irmão gémeo de Chagall. Por exemplo, o seu “Jesus escarnecido” mostra uma cabeça sem corpo a cuspir em Nosso Senhor, assim como várias mãos aéreas, incógnitas como luvas, O esbofeteiam – isto em pleno séc. XV! Uma pessoa olha para aquilo e pensa estar no séc. XX! Outro que tem graça é Mozart, pelo que não admira que Chagall o apreciasse tanto.
Para além de não ter medo da vitalidade da cor, há uma outra coragem ainda maior do que esta: Chagall não se envergonha da sua cultura, isto é, não se põe a desconstruir o seu quadro de referências, que é vício, e mesmo doença, deveras atual e generalizada. Não é só alegria e vida que há nas suas telas, mas sobretudo carinho e amor pelo mundo judaico no qual se quis sempre ver integrado. Com efeito, não é possível ser um génio fora de um contexto cultural. A Grande Arte é uma variação permanente sobre aquilo que vimos fazer antes de nós. Não é possível ser “contra” e ser “génio”; a genialidade avança em espiral. Ser “original” é “ir à origem”. Mesmo os desconstrutivistas têm de destruir alguma coisa já feita… até que não haja mais nada para destruir…
Numa entrevista do fim da vida, perguntaram-lhe se estava satisfeito e quais as suas crenças. A resposta foi mais ou menos esta: “Sim, estou satisfeito. Acredito primeiro em Deus, depois no povo judeu, na sua continuidade, na pintura e na música de Mozart. A única coisa que desejo é fazer livremente aquilo que quiser. O meu trabalho é a minha satisfação. Quanto ao resto, tudo continuará. Haverá outros Chagall. Sempre haverá artistas atraídos pela luz, pela música e pela poesia”.
Estava certo. Entre os muitos que depois dele foram Chagall – e para ficar apenas no nosso país – contam-se António Dacosta, Paula Rego e Ilda David.
Curiosamente, os dois primeiros começaram pelo surrealismo, como Chagall; mas é no segundo período que se libertam de si próprios.