CHARLIE
Alguém já disse que cidade civilizada é aquela em que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar aberto para tomar uma sopa e comprar um jornal. Outro disse que cidade civilizada é aquela em que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar aberto para tomar uma sopa e comprar o Pravda. Para mim, cidade civilizada é aquela em que, a qualquer hora da noite, você encontra um lugar aberto para tomar uma sopa e comprar o Charlie Hebdo ou similar, o que exclui todas as outras cidades do mundo, salvo Paris.
O Charlie Hebdo e outros, como o Canard Enchainé, pertencem a uma tradição de imprensa malcriada que vem desde antes da Revolução Francesa. É uma imprensa que não reconhece limites nem de alvos para o seu humor corrosivo nem de coisas vagas como bom gosto. Lembro uma capa que ficou famosa, já não sei mais se do Charlie ou do Canard, que era a seguinte: fotos dos órgãos genitais de várias pessoas, com legendas embaixo especulando de quem seriam. Entravam na lista políticos, astros e estrelas e até o Papa.
O Charlie Hebdo é um jornal nitidamente de esquerda, mas que nunca livrou a esquerda das suas gozações. Seu alvo preferencial é a direita religiosa francesa, mas, de uns anos para cá, ele vem incluindo o fundamentalismo islâmico nas suas críticas mesmo com o risco de atentados como o que acabou acontecendo na quarta-feira, que foi o mais trágico mas não foi o primeiro. Jornais como o Charlie, impensáveis em qualquer outro lugar, se beneficiam de outra tradição francesa, a da tolerância com a contestação política e respeito à liberdade de expressão. Por ironia, o atentado de quarta-feira deve fortalecer a direita xenófoba e anti-Islã da França, justamente a que o Charlie mais combatia. O cartunista Wolinski e os outros morreram pelo direito de serem livres, totalmente livres, mas seus assassinos não tinham nenhuma tradição parecida com a da França para conter o dedo no gatilho. No fim, os mortos do Charlie podem virar mártires de uma causa inimiga. Uma ironia que todos eles dispensariam, se pudessem.
Quando a turma do Pasquim foi presa pela ditadura, houve uma mobilização para mantê-lo nas bancas. Muita gente, arregimentada, entre outros, pela Baby Oppenheimer, então casada com o Tarso de Castro, colaborou. Até meu pai participou do mutirão solidário. Está acontecendo a mesma coisa com o Charlie. A próxima edição do semanário será histórica.
O escritor gaúcho Luís Fernando Veríssimo é um dos mais importantes cronistas do Brasil. Com uma imensa produção literária dá vida a cultura brasileira contemporânea. Como não poderia deixar de ser aqui está a palavra do cronista sobre o atentado ao jornal Charlie Hebdo, de Paris, ocorrido no dia 8 de Janeiro.
Crônica publicada originalmente no Jornal O Globo, edição de 11 de Janeiro.