Compasso binário
Joel Neto
Se de uma pessoa se pode dizer alguma coisa a partir do futebol de que gosta, quero portanto que se saiba isto: que gosto do futebol alemão. Mesmo quando vejo o Sporting defrontar o Bayern de Munique – mesmo aí, proto-hooligan, quero sobretudo ver jogar os alemães. Futebol espanhol, holandês, africano? Equívocos, não mais. Aprecio o futebol argentino pela raça, o futebol inglês pela paixão, o futebol italiano pela segurança. Mas é o futebol alemão que verdadeiramente me encanta. Futebol brasileiro? Para barroco basta-me Bach – e o que quer que venha a seguir é como continuar a comer muito depois de estar satisfeito.
Uma equipa brasileira tem três tempos: defesa, meio-campo e ataque. Uma equipa alemã tem dois, defesa e ataque – ou, mais provavelmente, um só tempo mesmo. Um alemão ataca quando quer preparar a defesa e defende quando quer preparar o ataque – e nem o ataque é a melhor defesa, como proclamam os ingénuos, nem a defesa o melhor ataque, como querem os ressentidos. Ambas as coisas podem ser uma só – todas as coisas juntas como uma só, num movimento de primeira e segunda e terceira e quarta investidas sucedendo-se a um ritmo compassado. Isso nos ensinam os alemães sobre a vida.
Harmonia. Unidade. Inexorabilidade. Eis o que me interessa no futebol: geometria. Comparar o futebol alemão com o futebol brasileiro é como comparar o ‘Matrix’ com a ‘Orquídea Selvagem’: de um lado um futebol pantomineiro, às arrecuas, encenadíssimo, como se no fundo não tivesse dentro de si próprio uma origem ou um destino; do outro um futebol rectilíneo, rápido e ‘high tech’, sem espartilhos de coreografia – um espectáculo que ocupa todo o palco, alta e baixa ao mesmo nível, o espaço cénico como um só universo repleto e hermético.
A bola não é o centro do futebol alemão? Precisamente. Eu gosto sempre mais do futebol quando este consegue abstrair-se da bola. Olha-se para um jogador alemão a levantar os olhos para a baliza e sabe-se que vai ser golo, esteja a bola onde estiver. E, se não se trata de um alemão, mas apenas de mais um daqueles brasileiros ou paraguaios ou croatas que este mundo pôs agora a circular, tanto melhor: o futebol vira decoração moderna, misturada, tensão, cada peça como uma peça única e irrepetível – vira arte pura.
Vou deixar os génios de lado. Os génios nunca são comparáveis. Pelé, Garrincha ou Ronaldinho, Beckenbauer, Mathäus ou Klinsmann – a esses não se pode compará-los. Mas o facto é que, se vejo os filmes, gosto mais de um golo do meio-campo do Klaus Augenthaler do que de uma sucessão de fintas de Jairzinho. Gosto mais de um livre de Andreas Brehme do que de uma cavalgada do Fenómeno. Mais de um desvio de Klose do que de um vólei de Rivaldo. E gosto mais porque, se o futebol brasileiro se joga com as extremidades, que é onde se concentra a habilidade, o alemão joga-se com o corpo todo, que é por onde circula a alma.
Harmonia, unidade, inexorabilidade. Força e energia, generosidade e calculismo. Geometria, no fundo – e sempre um pouco de cinismo. O Brasil é um dos meus países preferidos. Da Alemanha, nem sequer gosto particularmente. Mas o samba não é a única dança. E eu adoro aquele bailado simples em que a seguir é sempre golo. Mesmo que a bola não entre. Mesmo que não haja bola.
O futebol alemão é o homem a suplantar a sua condição de homem. Não há nada de mais superlativamente humano do que isso.