CONSELHOS AOS LEITORES DE A MULHER QUE VENCEU DON JUAN, DE TERESA MARTINS MARQUES
Julieta Monginho
1. Escolha o leitor uma larga tarde, se possível de sábado, como esta, e aquelas em que muitos de nós deixávamos um filme por ver ou um lanche por lanchar para ir ao facebook à procura do capítulo semanal do folhetim. Neste thriller não há momentos mortos. Sem as reflexões que a autora propõe, os passeios pelos quais nos conduz, a navegação por paisagens mutantes, o enredo perder-se-ia do sentido e o leitor perderia a aventura.
O tempo, a sua duração, o abraço que nos dá sem nos sufocar, esse raro tempo espreguiçado, é essencial à boa leitura deste romance.
Como é essencial ao amor, o seu verdadeiro centro, o para o qual convergem todas as nuvens, todas as ideias, todos os rios secretos.
A autora aplica com mestria os enleios da sedução. Prega-nos a maior das partidas: enquanto disseca sem piedade o “dolo” do sedutor na relação amorosa, não o enjeita enquanto arte na relação com os leitores.
2. Venha o leitor masculino com o desconforto de quem entra em terreno movediço. Sabendo de antemão que há-de ser uma mulher a vencedora do confronto, o triunfo que lhe resta consiste em não se identificar com o vencido Don Juan, o predador, aquele que destrói o outro para sobreviver ao combate que trava consigo próprio e com a sua imagem.
Venha a leitora sem peneiras de vencedora antecipada, o género não lhe atribui estatuto superior. Para não chegar ao fim com a sensação de ter sido apanhada numa curva ilusória, terá de enfrentar os mesmos perigos, os mesmos espelhos que o seu aparente adversário.
Disponha, pois, do título do romance à sua vontade. A mulher a que se refere não é apenas Sara, Esmeralda durante a clandestinidade, mas um colectivo de género misto. Don Juan é ele mesmo a personificação/simplificação de vários tipos de personalidade que, no seu grau mais virulento, se torna um “serial killer dos afectos”, nas palavras da narradora.
3. Relaxe. Procure o lugar mais aprazível. Este livro vai fazer-lhe bem ao coração e ao sentido de justiça. Ao contrário de Dante à porta do inferno, a autora não nos previne contra a esperança. Não que a visita ao inferno seja poupada, mas nas deambulações pelo Hades desta vez Orfeu resiste, Eurídice é resgatada.
A subversão dos relatos antigos é um rasgo que Teresa Martins Marques assume com a naturalidade das travessuras da infância (uma delas, se não estou em erro, inclui umas certas amêndoas de licor). Neste livro é Penélope quem viaja, é ela quem vive as aventuras de Ulisses, enquanto este se divide entre o amo e o aio, também ele sujeito a uma transfiguração – metamorfose – que só lá mais para diante o tornará companheiro e herói.
4. Prepare o leitor uma malinha, um estojo de sobrevivência para acompanhar esta viagem, que inclua a bebida preferida, uns amuse-bouche e muita curiosidade. Aliás, se “é fácil transformar a alma em lama”, como a dado passo observa a narradora, não é menos fácil transformar ambas em “mala”, a mala surgindo ao longo do livro como o reduto do essencial, sempre pronto a acompanhar quem quer partir. Dir-nos-á ainda a narradora, e é este um dos lemas deste livro de proveito e exemplo, “tudo o que sou é a minha liberdade”.
5. Nesta viagem de rigor e aventura, não tenha o leitor medo de se marear, mesmo quando subir para uma embarcação ao sul. Há-de saltar da beleza para o horror no mesmo parágrafo, tal como na vida. Há-de encontrar nas paisagens deslumbrantes o palco dos actos mais atrozes, como acontece num apartamento com vista para a foz do Douro. E nas agrestes – casas pequenas, autocarros atulhados de sobreviventes – a liberdade mais feliz.
Contrastes, dicotomias: entre força e fraqueza, entre realidade e aparência, entre liberdade e escravidão. Não se apoquente o leitor com reticências ou adversativas. O tom é afirmativo. A autora sabe ao que vem, trata de definir os campos em confronto. De um lado as personagens que sabem amar: Sara, a quem ao nascer todas as graças foram dadas e a todas ia perdendo por um triz. Bela, rica, bondosa, culta e…ingénua, caindo aos dezassete anos na rede de um sedutor. Luís, o professor brilhante e…ingénuo, também ele vítima de uma Doña Juana. Lúcia, a psicóloga de passado misterioso, anjo da guarda das mulheres em fuga. Manuela, a jovem que escapa à condição de vítima e se entrega ao estudo do Diário do Sedutor, de Kierkgaard, defendendo uma tese, intitulada “Retórica Amorosa de Don Juan. Sombras da Sedução”, destinada a entender a origem profunda do donjuanismo. Da qual, apesar da persistência da dúvida filosófica, emerge uma ideia-força principal: Don Juan não ama as mulheres que conquista em série, através da arte da palavra. Don Juan, na sua forma letal, pertence à categoria dos homens que odeiam as mulheres, como aqueles que dão o título ao primeiro volume da trilogia Millenium, de Stieg Larsson, que a autora cita no original sueco.
Do lado oposto, os que não sabem amar, porque sofrem de “narcisismo exacerbado”: Amaro, o mais odioso biltre, cirurgião plástico. Joana, também ela fazendo vida da aparência, o correspondente feminino de Don Juan, no que constitui uma das especificidades mais interessantes do romance. Manaças, um sumaríssimo falhado, através de quem a autora descreve os métodos de sedução e os defeitos do sedutor num diálogo que evoca a conversa entre Don Juan Tenorio e Don Luís, na obra Don Juan Tenorio, de Zorrilla (1844).
As personagens que os acompanham enquadram-se também elas num ou no outro campo: Joaquim, o motorista bondoso, Paulo, o comissário compassivo, as mulheres da Casa Abrigo, estão no campo dos que amam. Alberto, o amante temeroso, Vargas, o traficante, no campo oposto.
6. Sossegue o leitor. O amor romântico não se opõe aqui ao amor erótico, antes o integra como bênção fruída. O confronto dá-se com o amor assimétrico, baseado em relações de poder, o que redunda na negação do próprio amor. “Werther é interioridade, Don Juan é exterioridade; Werther é haute couture, Don Juan é pronto-a-despir; Werther é gourmet, Don Juan é fast food.”
Afirma-se, isso sim, a crença na durabilidade da relação baseada no respeito, na liberdade, na doação e na “coragem da repetição”. A autora agarra numa pedra e vai implacavelmente cortando o que fere, o que cega, o que se falsifica, para ficar com o diamante, o centro – o coração – a pureza. Para descobrir o amor no mais elevado grau de pureza.
Nas palavras da narradora “amar é um verbo transitivo”. Um verbo que pede um complemento, um alguém que é outro em si, prolongando a alteridade no novo ente relacional. Uma nova entidade que, não sendo simbiótica, transcende a mera soma aritmética. O amado integra-se neste novo ser, proposto e esculpido pelo amor. A ressonância camoniana está presente: “Transforma-se o amador na cousa amada/por virtude do muito imaginar”.
7. Pense o leitor em três desejos, assegure-se que pode ir em busca deles, sem que ninguém o prenda. No ensinamento que a autora nos deixa, um dos ingredientes do amor assimétrico, ou seja da negação do amor, é a ausência de liberdade, por oposição à sua presença no amor verdadeiro. Este preceito – só há amor em liberdade – é repetido ao longo do texto como um refrão, uma ideia que Sara repete para não claudicar, que todas as Saras devem pôr em prática para não perecerem. A liberdade e, acima de tudo, a lucidez da liberdade, não pode sucumbir perante a ilusão do amor idealizado.
Esta afirmação de liberdade, contra as relações baseadas no domínio de um sobre o outro, estende-se ao laço filial, o que liga Lúcia à sua filha Joana. A autora aborda este laço por um ângulo pouco visitad
o na literatura, o da inversão dos papéis tradicionais de autoridade e tirania, como se desta feita fossem os filhos a engolir Cronos. De certo modo prolonga o questionar do instinto maternal, na senda, por exemplo, de Elisabete Badinter, na sua obra significativamente intitulada “L’Amour en Plus”, traduzido e publicado em português com o título “O Amor Incerto”.
8. Prepare-se a leitora, embora seja sábado, cuidando bem de si. Tome uma dose comedida de egoísmo, que o mundo não há-de desabar enquanto se entrega à leitura. Este romance assume o propósito didáctico do que costuma chamar-se o empowerment da mulher, por oposição à sua nulificação. Apesar do seu passado recente, ou por causa do seu passado mais que perfeito da infância, Sara exibe-se desde o início como uma mulher forte e corajosa, apenas com um interregno de fraqueza, atribuído à paixão. Um modelo, para todas quantas desejam fugir à condição de vítima e, mais do que isso, à resignação/comprazimento.
A começar pelas companheiras da Casa Abrigo, cada uma delas com o seu dote próprio, especialmente o de Maria para a cozinha, não importando a sua origem, aliás heterogénea. Ao ler as passagens em que convivem, numa leveza recém-adquirida, apetece-nos aplaudi-las, a elas e a quem, através das associações que as apoiam, no caso deste livro a APAV. Apetece-nos, como num manifesto, dizer de pé ó vítimas da violência.
Odete, Maria, Esmeralda e todos os outros nomes duplamente fictícios, são a identidade de quem ousou viver. A relação que se estabelece entre todas é comovente e alegre, porque assente na igualdade que a libertação proporcionou.
A diversidade de origens das mulheres que habitam a Casa Abrigo serve à autora de pretexto, como tantos outros, para viajar através da riqueza cultural do país, de Trás-os-Montes ao Algarve, demonstrando que este território construído está inscrito num mapa inapagável, que a crise morde, mas não vence.
9. Ganhará o leitor em ter à mão um aparelho com ligação à rede. Melhor ainda, instale-se numa biblioteca. Assim poderá seguir e aprofundar as pistas de leitura sobre o tema principal e os circundantes. Neste romance-ensaio (ou neste “manual para parvos que querem deixar de o ser”, nas palavras da narradora), muito terá a aprender sobre o amor, mas também sobre história, arquitectura, criminologia, sexo, música, gastronomia, língua dinamarquesa, pintura, cinema, automóveis, psicoterapias e organização doméstica. A referência, a reflexão, o propósito didáctico, não são elementos excepcionais, inserem-se no texto com a mesma naturalidade das peripécias próprias do folhetim. Este é um daqueles romances que meditam, segundo a expressão de Milan Kundera.
10. Se o leitor não chegou a ler o folhetim, não sabe o que perdeu, tente recuperar alguma coisa lendo o livro. Se o leu através do facebook, não julgue que dispensa este novo formato. O folhetim e o livro são duas obras distintas, na estrutura, na consistência, no pacto narrativo.
O que ficou do folhetim é uma teia de sedução ao leitor que, enfim liberto da tirania do tempo, anseia não pela semana seguinte, mas pela página seguinte. Navega na história como navega na rede, num googlar de saberes e fantasias.
Ficou também um romance cuja ligação a quem lê não se esgota no acto da leitura. Vai além, convoca-o literalmente para dentro do livro, assim se alimentando um ao outro, assim se amando um ao outro, autora e leitor, em co-autoria virtuosa. Teresa Martins Marques estica este jogo amoroso de modo a aparecer, também ela, no romance, qual Velásquez no quadro As Meninas, como palestrante em Tavira sobre o bastardo de D. João VI.
Permanecem ainda do folhetim traços inerentes ao meio de grande difusão que é uma rede social: o objectivo de contagiar, de se tornar viral. O imperativo de instituir uma ética nas relações amorosas.
Não é Sara que vence Amaro ou Luís que vence Joana. No dia em que perdem o medo, deixam, simplesmente, de os alimentar, libertando-se do jogo em que, pelo temor e pela aceitação do sofrimento, tinham participado. Don Juan é vencido pela sua própria incapacidade de escolher.
Teresa Martins Marques será uma das raras mulheres, que ousaram abordar directamente a figura de Don Juan, aparecida em El Burlador de Sevilla (1630), depois de Zorrilla, Cervantes, Goldoni, Lorenzo da Ponte – o autor do libreto de Don Giovanni, a célebre ópera de Mozart – Balzac, Byron, Pushkin, Dumas, Baudelaire, António Patrício, Saramago, Almeida Faria. E todo o resto da vasta bibliografia oferecida pelo texto.
“Vês, vês, eu também sei contar a história”, diz a menina Sara à criada/ama, no doce tempo da infância. Memória de Sara, memória de Teresa? Sim, Teresa sabe contar a história, e sabe recontá-la a partir de um ponto de vista vigorosamente novo.
Não terá sido a Teresa, e só a Teresa, a mulher que venceu Don Juan?
Teresa Martins Marques, A Mulher que Venceu Don Juan.
Lisboa, Âncora Editora, 2013 (326 p. )
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Sobre a Autora: JULIETA MONGINHO –
Julieta Monginho (Lisboa, 1958) escritora e Magistrada do Ministério Público.
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Licenciou-se em Direito, tendo frequentado o Centro de Estudos Judiciários em 1983 e foi magistrada em Montemor-o-Novo entre 1985 e 1988; em Torres Vedras entre 1988 e 1990; em Sintra entre 1990 e 1994, e em Cascais entre 1994 e 1998. Entre 1998 e 2000, foi assessora no Supremo Tribunal de Justiça. Na actualidade, é Procuradora da República no Tribunal de Família e Menores de Lisboa.
Obras
• A paixão segundo os infiéis (1998)
• À tua espera (2000)
• Dicionário dos livros sensíveis (2000)
• Onde está J.? : diário (2002)
• A árvore no meio da sala (2003) (co-autora)
• A construção da noite (2005)
• A terceira mãe (2008)
• António, Maria (2010)
• Metade maior (2012)
Prémios
Máxima de Literatura 2000, com À tua espera; Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB 2008, com A Terceira Mãe.