“Conta-me contos, ama”
No Lar da Terceira Idade onde agora vive, Luzinha continua primorosamente a pintar de loiro os seus longos cabelos bem cuidados. Apesar das rugas, permanece segura, na sua pose de fada, de “fazedora de sonhos”. Por isso, distancia-se cada vez mais da realidade do cartão de cidadão que a identifica como “Luzia MariaAndrade de Sousa e Castro”. Não, ela é para todos apenas e somente a “Luzinha”, nome eivado de toda a ternura contida num diminutivo.
Começou por ser professora do primeiro ciclo e, por ensinar, as primeiras letras, naquela matéria curiosa, irrequieta e plena de sabedoria que eram as crianças. Gostava da sua profissão, mas com o passar do tempo, o desencanto e o cansaço foram surgindo. Apercebeu-se que a sua vocação não era ensinar a ler, nem escrever, mas antes semear os primeiros sonhos. Além disso, não eram só as crianças que necessitavam desse alimento da alma, como do pão para a boca, os adultos também dele necessitavam. Por isso, uma pós-graduação em Expressão Dramática, onde adquiriu alguns conhecimentos teóricos e ferramentas imprescindíveis para a realização do ofício de se contar aos outros.
Além disso, tivera um casamento longo e feliz, dois filhos, quatro netos e quando o companheiro partira decidira optar por aquele lugar, pois pesava-lhe a solidão.
Com quase oitenta anos, tinha uma saúde perfeita, continuava com uma excelente memória e uma voz límpida que tanto entoava canções de embalar como os cantares medievais, rompendo todas as arestas do tempo e acendendo uma luz na “Idade das Trevas” que, repentinamente, sem aviso, era arrastada para o século XXI.
A bordo de várias naus catrinetas, os seus outros companheiros de viagem eram transportados nas asas da magia. Alguns (poucos), prisioneiros das angustias, ressentimentos e ódios antigos mostravam-se renitentes em ouvi-la, permanecendo encarcerados e sós nos seus reinos de espectros. No fundo, invejavam-lhe a alegria espontânea, aquela voz, aquele encanto, a luminosidade que irradiava além do tempo, e, sobretudo a popularidade de que usufruía. Todas as atenções pareciam convergir para a “fada-contadora”, mal pronunciava as primeiras palavras, como se fosse uma janela secreta se abrisse, libertando a fulgurante luz da magia.
Ao contrário de outros, Luzinha não coleccionara ódios, invejas, nem ressentimentos, nem amara apenas no superficial, nem reprimira sentimentos que, às vezes, lhe apertavam o peito, como se a quisessem estrangular. Nunca escondera a bondade nem a generosidade atrás da casca do orgulho nem da frieza. Amara quem quisera amar, abraçara e beijara quem lhe apetecera e sempre fora profundamente grata à vida.
Muitas vezes, na brincadeira, Sara quando abandona o seu mundo de poesia e deixa de ouvir as asas das gaivotas, cita Fernando Pessoa de cor, pedindo a Luzinha uma nova história: “Conta-me contos, ama…/ Todos os contos são/ Esse dia, o jardim e a dama/ Que eu fui nessa solidão…”
Então, a magia inavade aquele espaço normalmente pintado por uma tristeza branca e asséptica, rasgando as arestas do tédio e das angústias. O tempo parece reverter o seu curso pois “há muito, muito tempo, num reino distante…” E todos os “sésamos” se abrem rumo ao paraíso remoto e esquecido onde habitam todos os sonhos.
Dora Nunes Gago, in A Oeste do Paraíso, ed. Emooby, 2012 (adaptado e reformulado)