CORPO
9 de Março AD 2014
Uma das mais originais ideias da cultura hebraica relaciona-se com a interpretação, não apenas positiva mas, sobretudo, jubilosa da existência do mundo; “mundo”, não apenas matéria, porque esta pode ser encarada negativamente, como amorfa, isto é, in-forme, o que equivale a dizer sem sentido. O Génesis fala do mundo como obra de arte, a qual foi avaliada pelo Criador como “bela e boa”, do princípio ao fim. A Bíblia insiste que Deus não criou nem o mal nem a morte.
O pensamento mais comum, antes e depois do diâmetro hebraico, inclina-se para uma leitura que considera a existência do universo como queda, portanto como descida de nível ontológico. No caso das religiões místicas, haja em vista o budismo, nada e vazio, aos quais se chega por via de uma difícil ascese, é que são o horizonte da sabedoria. Mesmo a Grécia tende para esta recusa do sensível: Anaximandro garante que os seres hão de pagar pelo atrevimento de terem vindo à luz; os atomistas, ao esfarelarem os corpos até aos mínimos de matéria, aniquilam a finalidade, substituída pelo mecanismo, pai do materialismo contemporâneo; Parménides, com a sua apologia do ser abstrato, vai influenciar o mundo das ideias, de Platão, que, por sua vez, permanecerá uma das influências determinantes do Ocidente.
A originalidade bíblica é tão desconcertante que até o Cristianismo vai sofrendo, de vez em quando, tentações contra o mundo, veja-se as várias aparições da gnose, através dos séculos — e logo o Cristianismo, a religião do Filho incarnado! É que agora já não é só o Pai que é escandaloso ao criar com enlevo o mundo, mas o próprio Filho delibera entrar no mundo e ser um corpo! E logo o Catolicismo, que sobrevive exclusivamente enquanto há Eucaristia, enquanto Deus entra no corpo dos fiéis para os santificar! E logo o Catolicismo, que promete a ressurreição da carne!
Engana-se quem pensa que a nossa época libertou o corpo das pesadas cadeias com que a tradição supostamente o condenou ao degredo. Nem tudo o que brilha é ouro e até dava jeito ler Freud de novo. Os modernos moralistas são perversos: pois roubar o espírito ao corpo, como o fazem os materialistas, é escarrar na cara do corpo; pois o frenesim sexual coloca o corpo de gatas, recusando a evolução das espécies, credo que diz professar; pois a cultura do esqueleto e da morte, das dietas disto e daquilo e da eutanásia assim e assado, revelam asco pelas leis da natureza; pois a arte dos proclamados Picasso, Francis Bacon e comparsas é um escárnio diabólico daquilo a que até os gregos não conseguiram resistir: a beleza insuperável dos corpos.
O maior problema metafísico do darwinismo não reside na afirmação da seleção natural, mas sim na paradoxal recusa em aceitar a inteligência que se manifesta por toda a matéria e que culmina no corpo humano quando este atinge a maturidade da pessoa livre. A lógica do darwinismo leva a pressupor um aperfeiçoamento infinito e — pelo menos em hipótese teórica entre as mais razoáveis — o corpo imortal. Atrás desta recusa está, de novo, o pânico da morte, que há muito medo em não levar uma viagem até ao fim.
Coitada da matéria, a quem os homens decidem recusar o direito de existir! Coitado do corpo, obrigado a vilipendiar-se! E, no entanto, os olhos persistem em consolar-se com o que veem; e os ouvidos teimam em mandar à alma provas da felicidade possível já neste mundo! Coitado do mundo, que o tornaram imundo!