Correntes d’Escritas, 2000-2013
Sobre as Correntes d’Escritas que na Póvoa de Varzim se realizam desde 2000, já terei dito muito, talvez nunca o suficiente. Ainda bem que agora na Internet corre vasta escrita sobre esse belo acontecimento cultural. Todavia, porque me pedem para o “Comunidades”, aí seguem as linhas sobre a décima terceira edição que escrevi em e-mail colectivo para meia-dúzia de amigos e em que me limitei a descrever experiências sem o menor cuidado formal.
1 – O programa das Correntes – Mantem-se o esquema inicial. Devido às aulas, tenho que atravessar o Atlântico e fazer escala no centro da Europa (Paris, Zurique, Frankfurt, ou Londres) e, quando chego, as Correntes já começaram. Costumava perder um dia e meio, mas este ano, devido à redução no orçamento, só falhei meio-dia. Foram oito sessões (painéis). Há ainda uma sessão de encerramento e actividades paralelas. Entre estas introduzem-se lançamentos de livros. Dois autocarros levam-nos do hotel para o auditório e adjacências onde funciona também um café e uma feira do livro. Os mesmos autocarros transportam-nos para os restaurantes – sempre um diferente. Quer dizer, estamos todo o dia juntos. À noite, depois do jantar, devolvem-nos ao hotel e uma grande parte do pessoal queda-se noite dentro falatando no lobby. É esse o esquema que há anos a Manuela Ribeiro, a alma das Correntes, coadjuvada por uma equipa magnífica de gente que não vejo envelhecer, pôs a funcionar sobre rodas naquele ido ano 2000, com o apoio total do Vereador da Cultura, Luís Diamantino, a partir de uma proposta inicial do Francisco Guedes.
2 – Ida às escolas – Faz parte do programa a ida de escritores a escolas da região. São elas que convidam e vamos em grupos de três ou quatro. Este ano coube-me a escola secundária Eça de Queirós, na Póvoa, por sinal pela terceira vez, a falar a alunos do 11º e 12º anos. Mais de uma centena deles. Atentíssimos e civilizados, fizeram perguntas e revelaram estar ali com interesse e não a fazer um frete. Depois fomos até à sala de professores para um café e conversa. Uma simpatia de gente.
3 – Exposição e livro sobre os Açores – O fotógrafo Jorge Barros, grande fã dos Açores, tem uma exposição intitulada “Aproximações”, composta de fotos em paralelo – uma açoriana e outra continental (contribuí com um texto para uma dessas duplas). Ele levou este ano essa exposição à Póvoa em simultâneo com o lançamento de uma edição sua de As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, com mais belíssimas fotos.
4 – Sessão extra – Os Booktailors são uma empresa jovem ligada à actividade editorial e fazem todos os anos uma gira sessão de entrega de prémios de edição. Entregam também prémios especiais e este ano houve um para o lendário livreiro Jorge Figueira de Sousa, da Livraria Esperança, no Funchal, e pediram-me que fosse eu a fazer a entrega, simbólica apenas, já que ele, doente, não pôde estar presente. O evento é uma experiência gostosa porque aquela rapaziada é engenhosa, criativa.
5 – As refeições – São sempre um alegríssimo convívio e nunca se sabe em que mesa vamos cair nem ao lado de quem. Nem interessa, porque as Correntes arrancam de cada um o seu melhor e as conversas moram sempre no agradável.
6 – O convívio – Há duas dimensões – o convívio entre os participantes e o convívio com o público. Entre os participantes há sempre muita gente que já se conhece – quer das Correntes, quer de outros encontros – daí o prazer do reabraço. Há também outra que vai pela primeira vez, mas não resta tempo para se estar com todos. E é pena porque há sempre muita gente interessante que nos escapa. Quanto ao público, há os infalíveis, mas há também o novo, de todo o país. O auditório tornou-se pequeno para as sessões mais concorridas. Na de encerramento este ano houve fila cá for a, meia-hora, antes quando a sala já estava cheia. Muita gente foi-se embora. A organização vai ter de arranjar um grande ecrã para as salas ao lado.
Tudo é muito sobre a rama no contacto com o público, concedo, porque falta tempo para melhor. Depois há sempre que dar atenção a quem solicita assinaturas de livros, como há ainda os inevitáveis chatos que nos querem absorver o tempo todo. Mas surgem figuras interessantíssimas. Um polícia do Porto, grande leitor, vai há anos com a mulher e vem sempre procurar-me para uma pequena conversa. Bem gostaria de o ouvir porque me parece ter estórias para contar. E não são poucos os casos desses. Jovens, idem. muito motivados e informados.
7 – As sessões – as sessões com os escritores são sempre de não perder. Acabo, porém, falhando muitas porque as solicitações brotam de todos os lados. As sessões a que assisti este ano tive de fazê-lo de pé, ao fundo da sala, e numa delas foi mesmo do fundo do balcão, porque o auditório abarrotava sempre, com gente de pé pelas ilhargas e outra sentada nos corredores. Por isso disse, quando iniciei a sessão que moderei na manhã de sábado: Hoje sou o mais sortudo dos participantes nas Correntes. Sou o único com lugar cativo nas duas sessões: agora como moderador e logo à tarde como palrante.
Sobre a última mesa, em que participei, aí vai este relato que está na NET:
http://www.cm-pvarzim.pt/groups/staff/conteudo/noticias/talento-e-os-seus-juros-em-reflexao-na-ultima-mesa
8 – O meu remorso – A organização das Correntes convida-me todos os anos e eu, anual e infalivelmente, sem querer parecer fazer-me rogado, tento resistir. Há muitos outros autores a convidar e eu próprio sugiro nomes. Vão acedendo na lista de sugestões, mas as idas dos escritores está cada vez mais entregue às editoras que sabem que as Correntes são uma grande oportunidade para se falar de um livro, visto a comunicação social cair ali em peso. E agora cada vez mais, com o aperto financeiro que limita muito os planos dos organizadores. Hoje monta-se as Correntes com metade do orçamento que algumas câmaras gastam em fogo de artifício.
Qual é então o meu remorso? Precisamente o de ir todos os anos, este tendo sido o meu décimo terceiro. A organização insiste na presença do grupo inicial que está automaticamente convidado. De facto tudo aquilo começou na magia de um pequeno evento na bonita (deveras!) biblioteca da Póvoa, num apertado auditório. Nem sei por que razão fui convidado. Estavam lá figuras gradas do mundo das letras, desde o João Ubaldo Ribeiro, do Brasil, ao Luís Sepúlveda, chileno a viver em Espanha (depois de uma temporada em Portugal), ao Germano Almeida, de Cabo Verde, e ao Manuel Rui, de Angola. O acontecimento foi um sucesso porque os escritores africanos e brasileiros deram logo um tom informal ao evento, contando estórias da sua experiência de vida que imediatamente cativaram o público. Ajudei à festa pois com eles senti-me em casa. A organização, gente fora do mundo das letras e do meio académico, não habituada a lidar com escritores, ficou surpreendida, todavia alinhou de imediato criando-se logo ali uma tradição que virou marca da casa. No ano seguinte, convidou os mesmos e alargou o leque, e o processo foi-se repetindo de então para cá. Fui tentando recusar-me, mas a insistência pareceu-me sempre sincera e obedeci.
Num dos anos, as Correntes coincidiram com um fim-de-semana longo na Brown e eu pude ficar até à terça-feira. A Manuela e o Diamantino levaram-me a jantar na Pousada de S. Félix e falou-se em modos de tornar o evento mais conheci
do nacionalmente. Sugeri-lhes que fossem ter com o Casino da Póvoa e lhes pedissem apoio para um prémio literário de algum peso, de modo a chamar a atenção dos média sobre o evento. O Casino acedeu de imediato e tudo mudou a partir dali. Começou a cair nas Correntes a comunicação social do país e os editores que resolveram fazer delas o grande momento de lançamento de edições, incluindo de autores hispânicos. A partir de então, passaram a constituir o grande evento literário nacional, e as editoras a encarregar-se de lá levar os seus autores. A organização insiste na presença do grupo inicial, mas apenas três ainda não falharam nenhuma porque os outros foram por uma razão ou outra faltando, se bem que vão sempre que podem. A mim calha-me no calendário, desde que aceitem que chegue ao fim da tarde de quinta-feira e me retire de volta na madrugada de domingo. Aperto essa viagem entre duas aulas porque na verdade gosto da experiência, embora isso me deixe na consciência um razoável peso, de algum modo aliviado pelo facto de hoje várias pessoas lá irem assistir por minha recomendação, pagando o hotel, frequentando restaurantes e animando a economia local, um modo indirecto de pagar tanta simpatia, pois na verdade nunca retribuirei devidamente tanto gesto (nem dá para contar).
9. Faltam as estórias – Caberia aqui contar algumas, o que as reduziria a uma pálida reprodução, pois impossível seria reproduzir por exemplo a primeira sessão com Rubem Fonseca e Eduardo Lourenço em verdadeiro show. Só video. Momentos magníficos de duas brilhantes e irresistíveis figuras da cultura luso-brasileira. Na falta delas, registo apenas uma quase sem graça. Fica, porém, a fechar este amontoado de impressões, dado que hoje, apesar da crise económica, o assunto parece ser a grande obsessão de muita gente das letras em Portugal: um participante citou, na sessão por mim moderada, uns versos de J. Tolentino de Mendonça sobre a necessidade de “uma nova gramática do humano”. No mini-intervalo, tempo de respiração antes de se apresentar o novo interventor, aproveitei para dizer que o verso do Tolentino Mendonça é bonito, no entanto é mais uma utopia. Uma nova gramática? Já viram o barulho que para aí vai só por causa de um simples e limitado novo Acordo Ortográfico?