Falta maresia no Centro
Dizer que falta mar numa ilha pareceria bizarro. Mas um ilhéu florianopolitano entende o que se quer dizer quando alguém lamenta a retirada do mar do centro nervoso da Ilha-Capital.
Houve um momento em que ainda era possível abrir um braço de mar no aterro da Baía Sul adentro, para que o “oceano” pudesse entrar entre os beirais manuelinos, embalando as canoas e os barcos um dia retratados por Eduardo Dias.
Canoas coloridas, com nomes açorianos – como “Angra do Heroísmo” e “Ilha Terceira” –, cheirando a algas e tintas frescas, ancoravam no cais do Mercado, orquestradas pelo marulhar lento ou violento, dependendo do vento. Canoas que traziam o pescado para as bancas do casarão amarelo: as tainhas, as ovas, os camarões.
Hoje, os frutos do mar chegam no freezer de um caminhão frigorífico – tudo bem, não vamos querer uma “regressão” ao útero da história. Mas todo ilhéu sente saudades do mar à sua porta – “ele”, que foi expulso pelo aterro e pela sua ocupação predatória.
Lá pelo ano 2000, o arquiteto André Schmidt venceu um concurso de arquitetura urbana, sob o patrocínio da prefeitura. Nele, o mar era devolvido ao Centro da cidade. “Entrava” aterro adentro, abria uma meia-lua até a beira da Praça da Alfândega e do Mercado. Criava um “porto abrigado” e uma “promenade”, com barzinhos e outros equipamentos de turismo à beira desse novo “mar”, extensão da Praça XV.
Delírio, utopia? Plantaram tantos “aleijões” no espaço acrescido que qualquer modificação supressiva pareceria um contrassenso. Com determinação, férrea vontade política e um “consenso” que essas questões jamais galvanizam, o projeto seria totalmente exequível.
Hoje, conformados, os ilhéus tomam o seu aperitivo no Mercado, sem vista pro mar. Têm que se contentar em vê-lo numa fotografia antiga, tom sépia, verdadeiro “telegrama” da memória.
Pedro Álvares Cabral, está provado, levantou ferros a partir do “trapiche” da Torre de Belém. Se fosse desembarcar na Ilha, sentiria falta do antigo trapiche da Alfândega.
Tivemos vários em Floripa. O do Veleiros da Ilha (único sobrevivente), o do Miramar, o da Alfândega, os da Rita Maria, o do Estaleiro Arataca e o da Praia de Fora. Numa época romântica, pré-Ponte Hercílio Luz, as balsas e os trapiches serviam o povo.
Trapiches são marinas. Que mal há em modernizá-los e equipá-los com banheiros, bares e instalações decentes?
Se esse vezo irracional de criar dificuldades para a implantação de marinas pontificasse na Lisboa dos “Descobrimentos”, o mais famoso dos trapiches de Lisboa seria embargado – ali, no colo do rio Tejo.
Não teria existido a Torre de Belém e o Novo Mundo estaria por ser descoberto.
Nem essa implicância explica a subtração do mar desse “poema ao luar”, como diz o verso famoso do Rancho de Amor à Ilha.
Nota: Crônica publicada originalmente na coluna do autor no Diário Catarinense de 18 de abril de 2011.
Do Autor: Sérgio da Costa Ramos:
Cronista dos mais conceituados do Sul do Brasil,ficcionista.
Membro da Academia Catarinense de Letras,destaca-se no cenário literário catarinense por sua fértil produção literária. Onde com sua escrita elegante,bem humorada e cheia de sutilezas conduz o leitor por caminhos do imaginário insular, por memórias desta Ilha que tanto ama,seu berço natal – Ilha de Santa Catarina