Terra Chã, 17 de Agosto de 2013
Tenho reservas quanto às reservas de Onésimo Teotónio de Almeida (expressas no último “Jornal de Letras”) sobre a protecção da pedofilia que faz, perante o silêncio do narrador, certa personagem de “Murmúrios Com Vinho de Missa”, de Álamo Oliveira. Naturalmente, não há um só momento, aspecto ou ângulo de abordagem por que a pedofilia tenha legitimidade ou beleza. A pedofilia é abjecta, ignóbil, intolerável. Cobarde. Mas Onésimo sabe muito mais do que aquilo de que me parece ter-se lembrado. As personagens são apenas uma parte do narrador e o narrador é apenas uma parte do autor. Mesmo quando o narrador é 99,5 por cento do autor, é ainda cem por cento personagem – e os obstáculos entre os espaços de criação envolvidos tornam a multiplicar-se se considerarmos uma quarta entidade ainda, evidente tanto na história como na teoria da literatura, e que é o autor enquanto criador (e não enquanto homem, portanto). Isto para dizer que o caminho que vai de Álamo à sua personagem, como o que ia de Nabokov a Humbert Humbert, de Süskind a Jean-Baptiste Grenouille ou (sei lá) de Defoe a Robinson Crusoe, é longo e tortuoso. E, mesmo que não fosse caminho nenhum, restaria sempre a literatura como exercício de possibilidades, como proposta de contrastes, como provocação – como obra de arte mais do que como sistema filosófico. Para além de tudo, a técnica do unreliable narrator é antiga. E, ademais, a literatura não tem de ser edificante. Alguma da melhor literatura, aliás, foi profundamente imoral. Portanto, pretender que “Murmúrios Com Vinho de Missa” pudesse ser um grande romance na mesma sem a oposição de Jonathan ao consenso antipedofilia é esquecer quase todas essas camadas. O sensualismo de que se alimenta está-lhe demasiado próximo do coração, é demasiado parte da sua integridade, para ser suprimível. “Murmúrios Com Vinho de Missa” também é o romance que é por causa dele, do silêncio que o narrador faz sobre ele e da quase insana coragem que essas duas circunstâncias encerram. Penso eu neste meu pensar de sábado à tarde – e que, por isso e por princípio, não é definitivo.