Sessenta e dez
O frio produziu uma névoa úmida, cortina que desenhou sobrancelhas nos dois faróis do misterioso carro negro que subia a Praça da Matriz, no exato momento do relógio da Catedral bater horas: soixante-dix. Sessenta-dez.
Talvez o veículo Vintage, mas ao mesmo tempo carruagem e abóbora mutante, de séculos ainda mais antigos, explicasse a festa no interior da cabine, artistas que já moraram na Rue des Abesses, na inspiradora vizinhança da Place de Tertre: Toulouse-Lautrec, Césanne, Pissarro, Monet, Gauguin – e outros nomes do impressionismo e do pré-modernismo francês.
O carro parou ao meu lado, na calçada do Poema Bar. E o cicerone dessa turma,Monsieur le Peintre, abriu-me a porta com o convite:
– Entra aí, deu soixante-dix!
Hora nova, capaz de juntar num carro onírico um caleidoscópio de épocas e escolas – e de reunir pincéis da arte pictórica de hoje e dos séculos XIX e XX. Para minha surpresa, não encontrei no “salão” do Rolls-1920 nem Woody Allen, nem Hemingway – que poderiam sugerir ter embarcado num filme ou num romance.
O carro passou diante da igreja que Dias Velho fundou e a primeira parada foi na Rua do Imperador, como se chamou, um dia, a rua Tenente Silveira. Ali, na esquina, materializou-se a exposição dos Chateaux Bordeaux, com direito à degustação das melhores obras de arte já engarrafadas, a atmosfera reconstituindo os castelos onde a uva passava pela mágica transição. Cálices retiniram, mulheres de cintura fina ergueram sua pernas, como se fossem cálices e hastes – com a permissão do mulherólogo Vinicius de Moraes, que não estava no carro, mas apareceu na esquina, trocando o uísque pelo vinho.
A próxima parada foi na Rua Moinhos de Vento, velho nome da Felipe: ali, a festa continuou, numa sala de cristais e pratas polidas, toalhas bordadas e engomadas. Um culto à mesa, ao vinho, e, outra vez, uma homenagem ao colo e às costas das mulheres, espáduas sobre as quais se derrama a tinta intemporal do artista.
Na rua Augusta (a João Pinto), onde um dia se hospedou o Cine Imperial, ao lado da Companhia Western e do seu relógio Vintage, o carro se deteve para examinar os cartazes: estavam “levando” Le Libertin – filme francês, como se dizia antigamente de qualquer filme com mulher de peito de fora. Quem sabe um filme com La Bardot, ou, um desfile – um pedaço “noir”, outro em cores vivas – mulheres passeando no alto dos seus saltos, sirigaitas de espáduas nuas, penduradas numa tela do Hotel de la Coste, ou no filme d’Amélie Poullain. Não só os prazeres da carne, mas os do tato – e os demais ingredientes da paleta machadiana: a mesa posta, cristais brilhantes, a luz quente das velas, o bom vinho, o paladar dos pratos e das palavras poéticas.
O carro parou na Farmácia Vitória, sopé da Praça da Matriz, a turma precisando de um Alka-Seltzer, efervescência para combater os excessos da comida e da bebida. E foi logo adiante, no Largo da Alfândega, à margem da Rua do Príncipe (Conselheiro Mafra), que se armou a lona do “Grande Circo”, picadeiro através de cuja serragem Monsieur le Peintreregressa aos anos 1950, equilibra-se num arame, anda de bicicleta, engole fogo e brinca com pincéis, tintas e cartolinas.
Pulando 20 anos, o circo sai de seus poros e entra em sortidas veias: vira escultor, desenhista, caricaturista, mímico, designer, cenógrafo, escritor, fotógrafo e ator – uma espécie de Marcel Marceau eletrônico, com aparições no “Fantástico”.
Sucederam-se as esquinas da Rua do Livramento (Trajano), com o Café do Ponto Chic, travestido de Caffé Florian, à beira da Piazza San Marco, a poucos metros do velho Miramar e da Laguna Floripana, com seu Carnaval, suas máscaras e seus mistérios.
Ali, defronte para o mar, passou, navegando como uma nave felliniana, os cenários de “Diário de Bordo”, porto de partidas e de chegadas, “porque dentro de um barco um homem se transforma”, se torna “outro” – como quer o verso de Fernando Pessoa.
Ainda faltam muitas paradas, muitas esquinas, e o carro dos múltiplos artistas chegará hoje às 19h30m ao CIC. Lá atracará num trapiche da “Ilha de Santa Catarina”, carregando no seu casco a velha dama figueira, agarrada ao pedacinho de terra, orgulhosa, entre os seus nativos: “poetas de letras e vida, pescadores, rendeiras, boêmios, bruxas, fadas, sábios, todos os ritos da tradição e dos costumes”.
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Não esperem o carro passar. Apareçam. Juarez Machado está fazendo sessenta e dez. Como um Benjamin Button, que nasceu velho e morreu menino, o artista coloca o carro de frente pra trás e, de ré, convida o leitor a passear pela vida que ele pintou.
Nota: Crônica publicada na coluna diária do escritor Sérgio da Costa Ramos, Diário Catarinense, de 19 de julho de 2012.
Reproduzida no Comunidades com a devida apermissão do autor.
Créditos: Foto 1. – Agência RBS,18/7 www.clicrbs.com.br
Foto 2. – Lélia Nunes,19/7