CRÓNICAS DA NOVA INGLATERRA
Em 2001, quando passei pela primeira vez em Stonington (Connecticut) identifiquei o frontão de «Portuguese Holy Ghost Society» a partir do que dele tinha lido nas Crónicas da Nova Inglaterra de João Medina. (O Onésimo Almeida é testemunha disto.)
João Medina : Dias Calmos em Rhode Island (Crónicas da Nova Inglaterra). Separata da Revista «Atlântida. 2º Semestre/94», (pp. 127 – 152), Instituto Açoreano de Cultura, 1994.
Deste espaço físico nos «falam» as dez imagens insertas pelo autor nas páginas finais (na sua maioria fotografias do próprio João Medina): um aspecto do porto de pescadores de Newport, o frontão do «Portuguese Holy Ghost Society» em Stonington (Connecticut), os seus espaços privados – os três plátanos e as folhas doiradas, o jardim, uma casa da Rua Fosdyke cobertos de neve.
São nove crónicas escritas in loco entre 6-X-1993 e 12-IV-1994, a saber:
«Estamos no ‘Vermelho’», «Relvas e Cheques», «The Portuguese Holy Ghost Society», «Pátrias Chicas», «Neve Doirada», «Estrelas Cristãs e Escudos de David», «Deus no Bus Stop», «Santa Joana de Passau ou uma Joana d’Arc Alemã», e por último «O Campo-Santo de Little Compton».
Nestes Dias Calmos em Rhode Island estamos na Nova Inglaterra, mas estamos nela com João Medina, vêmo-la e sobretudo sentimo-la com os seus olhos, as suas emoções, nestes fragmentos de paraíso, misto de espaço físico, espaço social e espaço psicológico.
O QUE É O PARAÍSO?
A primeira das crónicas inicia-se precisamente com a enunciação de um desejo que é necessidade mas também prémio, recompensa:
«A Nova Inglaterra: eu precisava disto – eu merecia isto». O mito do paraíso fica de imediato inscrito no incipit da crónica. O paraíso é o vocábulo que entre os persas significava «jardim maravilhoso» e é o lugar da felicidade dos justos, um prémio – «eu merecia isto». Mas o paraíso é também tido como privilégio de happy few. Lembremo-nos que no Egipto inicialmente só o Faraó tinha acesso ao Paraíso, depois tal privilégio estendeu-se aos nobres e só mais tarde se democratizou. Entre os Aztecas o povo estava condenado ao Inferno – o Mictlan, o mesmo acontecendo aos indígenas pobres das ilhas Tonga.
Seja qual for o Paraíso, existe uma relação entre o quadro geográfico e social de um povo e o seu Paraíso. No Corão ele corresponde a um oásis a que não faltam as belas mulheres abanando os leques a seus amos. O jardim de Osíris é um campo fértil nas margens do Nilo. O Paraíso de Dante é porventura menos empolgante para o leitor que o seu Inferno. O Paraíso é mais uma forma de dizer a beleza de Beatriz que mereceu ascender ao Décimo Círculo, do que propriamente um panorama de beatitude a duplicar no bem o panorama de maldade do Inferno.
COM MOACYR SCLIAR
O cronista João Medina fala do seu Paraíso, do seu Locus-Amenus e deixa para o historiador João Medina as contradições sociais.
O paraíso – privilégio dos justos – os que pelo labor mereceram o locus amenus é assumido deliciosamente nas primeiras linhas do incipit:
«(…) o Moacyr [Scliar] perguntava-me a dada altura, referindo-se à vida deliciosa e quase alciónica que aqui levamos, nesta terriola amena onde sabe bem viver: – Merecemos isto, João, merecemos mesmo…? – Garanti-lhe, sem hesitar, que sim, que Yaveth é bom e recompensa quem merece, e que, se Alguém nos mandou vir para este recanto aprazível de Rhode Island, o estado mais pequeno da América com nome de ilha – ilha de Rodes, que diacho de nome! – é porque, sem dúvida teológica ou até metafísica, uma secreta, invisível mas poderosa e inquestionável justiça nos decidiu recompensar de alguma coisa boa que tenhamos feito: gesto belo ou parágrafo catita ou pensamento formoso que o Vertebrado Gasoso nos decidiu creditar, pagando-nos agora com todos os juros, com a viagem e estadia nesta providencial Providence…»
RHODE ISLAND- ESPAÇO MÍTICO
Rhode Island torna-se um espaço eminentemente mítico. Porque é locus amenus – «recanto aprazível» – porque é minúscula ilha «o estado mais pequeno da América» e por isso simbólico da própria ideia de graciosidade associada a pequenez, porque é simultaneamente grande por evocação do Colosso do mesmo nome – a enorme estátua de bronze representando Apolo que figurou à entrada do golfo. Colosso que apesar da sua grandeza esteve sujeito a perecer num terramoto. Felicidade do locus amenus que poderá ser também perecível do ponto de vista de Moacyr:
«Que insiste na sua desconfiança perante tanta felicidade aparentemente injustificada, dizendo que ele se sentia no ‘vermelho’, que é como em terras de Vera Cruz se diz quando se está a dever ao banco, quando o saldo é negativo.»
O presumível autor da Obra De Septem Orbis Miraculis, Fílon de Bizâncio, de bom grado atribuiria não o quarto, mas o primeiro lugar a esta maravilha da natureza, a esta colossal miniatura de paraíso – o melhor lugar dos lugares, onde tudo vai pelo melhor, que contagia o narrador tomado de um «optimismo quase panglossiano».
E porque o enamoramento do narrador pela paisagem é apesar de tudo filtrado pela razão a sua mensagem optimista é sempre verosímil sob a capa da ironia que a veste, porque verdadeiramente ancorada no real como é o caso da auto-referência à Obra de historiador feita através do oportuno e saborosíssimo intertexto da Nau Catrineta.
E porque João Medina tem muito que contar, as referências culturais, históricas, míticas estabelecem relações reticulares com o texto-base da crónica do lugar paradisíaco dizendo de múltiplos modos a sua geografia, a sua gente, a sua história na História, fazendo conviver magistralmente Tântalo e os excedentes de leite da CEE, Voltaire e Yaveth, Carducci e Khomeini, Pasárgada e o Muro de Berlim.
ONDE ESTÁ A FELICIDADE?
A felicidade neste texto tem a sua origem numa premissa primeira e verdadeira: a emoção feliz de quem a escreve:
«Os três plátanos do meu quintal carregaram-se de oiro durante as passadas duas semanas e agora é vê-los largarem as suas folhas num verdadeiro nevão de amarelo torrado».
O Eldorado existe e está aqui. Não é preciso conquistá-lo. Basta merecê-lo, abrir os olhos e contemplar as pepitas aéreas que esvoaçam em flocos de neve doirada (o título da crónica) para gáudio dos olhos felizes que a contemplam. De nenhuma outra companhia precisa o narrador. Basta-lhe a neve doirada. A beleza basta-se.
FEDRO E ASCHENBACH
A Aschenbach basta-lhe olhar a beleza de Tádzio que «faz» a beleza dos canais putrefactos da Sereníssima. Mas não é pelo facto de este oiro das folhas ser putrescente que ele deixa de ser oiro no agora da sua beleza efémera como a juventude do homem, de Fedro intertextualizado por Thomas Mann em Morte em Veneza:
«Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito.»
E porque é caminho para o espírito, é também menos perecível, menos efémera do que a sua face visível encarnada nos homens. A natureza, o oiro dos plátanos será o caminho intermédio entre o transitório do homem e a eternidade, retorno cíclico do Tempo em cada Outono, em cada Primavera.
A literatura veículo e objecto da beleza de palavras feita é transitória em cada obra, mas eterna na cadeia de significações da história literária.
PROSA E POESIA
Não admira que o narrador seja tentado a definir prosa e poesia ao olhar a neve doirada do quintal «essa neve doirada cheia de glória, de beleza inútil». Ao dizê-la inútil está a restituí-la à sua utilidade horaciana: ser beleza para deleitar e por isso mesmo útil para os olhos feliz
es que a contemplam.
«(…) penso que a poesia deve ser ser capaz de dar em poucas palavras, com um brusco e rápido movimento de sílabas contadas, o movimento silencioso e hesitante mas breve da queda das folhas amarelas que se desprendem de um plátano, essa neve doirada cheia de glória, de beleza inútil, e que a prosa com tanta dificuldade tenta explicar, medir, comparar, racionalizar com os seus parágrafos sempre excessivos em relação ao fenómeno que se quer surpreender.»
«É isto a poesia, esses relâmpagos contínuos, desvendando-nos o que está oculto.»
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Teresa Martins Marques,ensaísta,crítica literária e investigadora de Portugal. Um nome da maior consideração entre seus pares do mundo acadêmico e literário. Uma referência para estudiosos da língua e literatura portuguesa de qualquer País.