Cruz ressuscita
Cruz e Sousa veio do espaço etéreo, chamado pelas homenagens de seu sesquicentenário. A Academia de Letras promove palestras, a Fundação Franklin Cascaes lança um selo comemorativo, a Ilha, enfim, reverencia o seu poeta universal, exatos 113 anos depois do trágico soneto que foi a morte em Sítio, Minas Gerais. Há 150 anos nasceu o filho de escravos libertos, adotado por um marechal humanista. Aos 37 anos, as hemoptises o levaram, com toda a sua arte de simbolista mundial.
Materializou-se o poeta sob a luz baça de um lampião, ali na esquina de Conselheiro Mafra com Trajano – no seu tempo, Rua do Príncipe com Rua do Livramento.
Dobrei-me, reverente, diante do Príncipe do Simbolismo e tive a comichão de saudar o negro com uma de suas notáveis aliterações e jogos vocálicos:
– Que vozes veladas, veludadas vozes te saúdem, ó poeta dos violões que choram!
Vi que não era um lampião, mas uma prosaica luminária de mercúrio, que tornava lívida a face do poeta e prateava a sua carapinha.
– E aí, meu Cruz, como têm sido esses 113 anos de eternidade?
Número encantado esses 113, durante os quais o poeta libertou-se das crises terrenas. Aureolado pela luz dos seres evoluídos, já não sente a agonia das hemoptises, a dor da tuberculose ou do preconceito, o sofrimento da vida foi recompensado pelo repouso da morte e pela elevação do espírito.
A dor que hoje deveras sente ainda é pelos que aqui vivem e padecem das feridas do existir. O poeta já não sente a mesquinhez dos que não lhe reconheciam o talento, a usura dos que não lhe perdoavam as dívidas, o racismo dos que lhe fechavam as portas por causa da cor da pele. Cruz, onde hoje está, não precisaria subscrever os versos de Vida Obscura:
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto de prazeres,
O mundo foi para ti negro e duro.
O bigode azulado pela luz fria, o “bombril” grisalho brilhando sob um facho da luminária, o poeta me saudou com olhos compassivos.
E depois moveu os lábios, para as primeiras palavras:
– Desterro está mudada. Superpovoada. Vejo a pobreza descendo os morros para a periferia da vida. A luta pela sobrevivência apenas se acirrou, sem se humanizar. Ah, meu amigo, o homem continua sendo um lobo carnívoro, que se alimenta da carne dos mais fracos…
O poeta ficou sabendo da crise americana, da crise europeia, desgraças que se espalharam pelo mundo, como uma peste.
– É iníquo que os que nada usufruíram paguem pelos perdulários!
Magoado com o mundo aqui debaixo, tão iníquo quanto o do tempo em que aqui vivia, o negro soltou a voz e libertou o segundo verso do Pacto das Almas, alertando que só a “eternidade” libertará o homem das injustiças do “marrom-que-fuça”, conhecido por “Mercado”…
É livres, livres desta vã matéria,
Longe, nos claros astros peregrinos
Que haveremos de encontrar os dons divinos
E a grande paz, a grande paz sidérea.
O negro divino coçou a carapinha, agradeceu as homenagens – extemporâneas, todas elas – e reassumiu o seu posto no panteão dos poetas, declamando o verso final do Velho Vento:
– Eu quero perder-me a fundo
No teu segredo nevoento,
Ó velho e velado vento,
Velho vento vagabundo!
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Sérgio da Costa Ramos,escritor catarinense, ilhéu de Florianópolis.
Um dos mais festejados cronistas com uma profícua e respeitada produção literária.
A crônica acima, está publicada na sua coluna do Diário Catarinense de 21 de novembro.