Da Importância de Parar para Pensar
Se há uma escrita do Faial, Mário Machado Fraião representa um seus escritores maiores e mais importantes. “As Ruas Demoradas” é o título da sua poesia reunida por Victor Rui Dores, recém-editada pelo Instituto Açoriano de Cultura.
Conheci o Mário em Lisboa. De vez em quando encontravámo-nos ou falávamos ao telefone. Usufruímos da nossa troca de palavras. Tal como acontecia comigo, notava que pretendia unir a sua voz à de outro ilhéu açoriano a viver no continente. Alguém que, como ele, se interessava por literatura, pelas literaturas insulares e pela prosas jornalísticas. Pretendia, recordo também, voltar a ter uma colaboração regular num jornal açoriano. Apesar de ter feito parte de tertúlias informais várias, entre gins tónicos temperados com as memórias do Peter e conversas demoradas com autores como José Agostinho Baptista (madeirense a viver em Lisboa), mesmo reconhecendo o Tejo como um rio que fez seu e de ter escrito sobre diversificado território continental, por não se promover e se pôr, como se costuma sublinhar, em bicos dos pés, queria pisar o abrigo açoriano que cedo deixara. Um reduto onde se conseguia reconhecer e onde era, na sua discrição, reconhecido.
Com as suas crónicas, algumas das quais incluídas no magnífico “Cartas de Marear”, e os seus poemas, feitos de versos limpos, certeiros, sem poetices e outras desnecessidades, lembramos que o seu território faialense se completava com influências distantes. “Aqui bailamos a chamarrita/ mas a música de fundo/ é um saxofone”. Lê-los é revisitar o Faial, caminhar, debaixo do voo das ganhoas e dos garajaus, sobre as águas marinhas da Marina da Horta. O primeiro poema de “Todas as Filarmónicas Perdidas e um Poema por Dizer” (sim, belíssimo título), de 1980, acaba desta forma: “Os rapazes do Clube Naval/ enrolam os panos/ no sossego quente/ de motores velhos”. É olhar para a montanha em frente e escutar a voz do seu pai, Mário Frayão, figura marcante do jornalismo e da vida cívico-política faialenses, que morreu há poucos dias: “Meu pai falava/ encostado à janela frontal ao Pico/ – Acerca destas ilhas é que deves escrever”. É prestar, sob o seu ameno comando, tributo às vozes de Roberto de Mesquita, Nemésio, Pedro da Silveira, Dias de Melo, e ainda acompanhar o seu romântico enamoramento, polvilhado de olhos verdes, ao som de Leonard Cohen, Vinicius de Moraes, Joan Baez ou Jacques Brel.
Nos títulos das suas obras trazia um persistente amor ao feminino, banhado em mar e melancolia. (Em 1995, editou um livro com mais um título raro, transportado pelo vento da ternura: “Os Barcos Levam Nomes de Mulheres.”) A atitude permaneceu até ao fim.
No seu último livro de poemas, editado um ano após a sua morte, ocorrida à conta de um AVC em 8 de Novembro de 2010, não são os olhos verdes que celebra. No poema “Sapatos de Bailarina” figuram os olhos azuis de uma mulher com quem se cruzou no metro. Assim são descritos: “Podiam reproduzir as águas tranquilas/ de um lago dos Alpes em acolhedora manhã/do mês de Junho”.
Parabéns ao Instituto Açoriano de Cultura, apostado num justo trabalho de recuperação das melhores penas destas ilhas.
Requisitei, por estes dias, na Biblioteca de Angra, um volume do (mesmo) Instituto Açoriano de Cultura com as comunicações apresentadas na VIII Semana de Estudos dos Açores, edição do Instituto Açoriano de Cultura, datada de 1987. O título: “A Autonomia como Fenómeno Cultural e Político”. As Semanas de Estudo dos Açores foram criadas, relembre-se, em 1961 e constituíram um fórum de reflexão e discussão de inúmeras temáticas açorianas. Foram uma manifestação da vontade de pensar os Açores de um modo aprofundado. E, se quisermos, distanciado dos poderes políticos. Por não se fundarem em razões político-partidárias, representaram, desde cedo, motivo de incómodo para as autoridades, o que só as engrandece. Pensar livremente incomodava.
No volume convivem as comunicações de nomes açorianos como José Enes, Álvaro Monjardino, José Guilherme Reis Leite, Álamo Oliveira e Eduardo Paz Ferreira e de nomes continentais como Jorge Miranda, António de Sousa Franco e Eduardo Lourenço (poucos sabem que também reflectiu sobre os labirintos da autonomia). O que se nota, ao ler estes textos, é uma preocupação autêntica em publicitar análises e raciocínios próprios sobre o regime autonómico, numa altura em que estava longe de atingir os anos de amadurecimento. Da questão política e constitucional à financeira e fiscal, passando pela, fundamentalíssima e cada vez mais preterida, dimensão identitária e cultural. Nomeando a cultura, diga-se que não há só mimos. Álamo Oliveira denuncia acomodamentos. “Das Artes às Letras, os Açores têm dado conta de si. Bem podemos desfraldar o nosso orgulho, pois, nesta área, estamos de pé. Só que o que nos falta não é alegrar a malta com o corropio do foguete e dos assopros no trombone. A nossa abundância denuncia também a nossa miséria, sobretudo porque nos falta espírito crítico, feito de ponderação e saber”. Quem fala assim vive há muito com o espírito desamarrado. Como diz hoje a rapaziada: respect.
Ao interpretar as comunicações, concorde-se ou não com as linhas cosidas por cada um dos intervenientes, cresce uma vontade nítida: a de que se volte a promover umas Semanas de Estudo. Porque só a reflexão de fundo, arrojada e sem complexos, com gente de vários departamentos, gerações e até geografias, poderá promover um debate que vá para além da corrente disputa eleitoral. Continua pertinente o espírito destas palavras, equilibradas e sensatas, de Reis Leite: “A futura revisão constitucional (…) não deve deixar de acolher assuntos como a revisão da forma do Estado, a clarificação do que são leis gerais da República, o aperfeiçoar do mecanismo do interesse específico da região e o subsequente reforço do poder legislativo regional”. Este pensamento já vai comparecendo nalgum diagnóstico imediato sem que seja ponderado, discutido e teorizado por quem para tal tem competência, vocação e, claro está, ambição. É altura de o fazer.
(Texto publicado no Diário dos Açores no dia 8 de Outubro de 2020)