Onésimo – Olá amigos, Boa noite! Eu devia ser mais formal e dizer telespectadores. E mais moderno, telespectadores e telespectadoras. Mas a ideia é fazer deste programa, desta série de programas, uma conversa à noite sentado ao sofá, apesar da formalidade de estar aqui com uma gravata nesta camisa de forças, e o meu convidado de hoje, o Daniel de Sá também está ali numa camisa de forças. A ideia é fazer uma conversa com personalidades açorianas e não açorianas para falar dos Açores. Será dentro destas balizas que manteremos esta série. Foi o desafio que a RTP fez.
Aceitei com imenso gosto, porque costumo dizer que é com imenso gosto que regresso aos Açores, mas depois corrijo. E digo. Não regresso, porque não se regressa a de onde nunca se partiu. E eu nunca parti daqui, da Ribeira Grande. Estamos no Teatro Ribeiragrandense. E o Daniel de Sá é da Maia, do mesmo Concelho. Parece que foi de propósito. Ele hoje não é Daniel de Sá, ele hoje é Daniel de cá. Somos ambos de cá.
Daniel – É verdade.
Onésimo – Fiz exame de 3ª e 4ª classe aqui na Ribeira Grande.
Também estive aqui com o orfeão do Seminário, ali à direita, na primeira voz. Demos umas fífias aqui.
O primeiro convidado é o Daniel de Sá. Não foi de propósito, foi por acaso.
Quem conhece o Daniel sabe que é muito difícil saber se ele se vai deslocar da Maia, porque o Daniel de Sá tem de dormir a sua sesta. Estamos a conversar em família e não sabíamos se o Daniel de Sá vinha. Mas se Maomé não vai a Meca, Meca vai a Maomé. Então, a RTP veio à Ribeira Grande para ter a certeza que Daniel de Sá vinha da Maia.
Daniel – Ficaram a meio caminho.
Onésimo – Encontrámo-nos há muito anos, pela primeira vez, nas páginas do jornal Açores, numa conversa ingénua sobre evolucionismo.
Daniel – Exactamente.
Onésimo – Passados estes anos todos, voltamos aqui para falar, não da tua vida, Daniel de Sá. Pois o Daniel de Sá tem uma coisa curiosa: não tem biografia. A sua biografia é: O Daniel nasceu na Maia, vive na Maia e, se Nosso Senhor lhe der vida e saúde, quer morrer na Maia. A tua biografia é a tua obra.
Daniel – Exactamente.
Onésimo – A tua biografia é a tua obra. Hoje, temos uma coisa em comum, além do mais, eu venho de Boston, não dormi nada a noite passada, tu não dor-miste a tua sesta. Se adormecermos aqui, façam o favor, apaguem as luzes, para a despesa não ser tão grande.
Como disse, Daniel, a tua biografia é a tua obra. Tu, na Maia, metido naquele canto, tens viajado imenso pelo universo de uma obra que hoje é notável.
Além de ser teu amigo, sou teu admirador. Mas, vou parar de falar, porque eu gostava é que tu começasses.
Fala-me disso. Recordo-me perfeitamente do teu livrinho Sobre a Verdade das Coisas, em que te revelaste um exímio contador de histórias. Queres falar dessa tua primeira experiência?
Daniel – Não é a primeira, é a segunda. A primeira foi a Génese.
Onésimo – Sim. Mas fala-nos então do contador de histórias.
Daniel – Foi talvez o livro mais fácil de escrever. Foi um livro contado pela avó de minha mulher, por amigos de mais idade, por gente que conheci, algumas histórias que eu vivi também. É um daqueles livros fáceis. E talvez, por isso mesmo, atraia o público leitor. Porque está ali toda a espontaneidade da realidade. Sem ficção praticamente nenhuma. Como disse na altura, foi a ficção ao serviço da realidade e a realidade ao serviço da ficção. Por acaso, agora acaba de sair a 2ª edição.
Onésimo – Dizes que a tua primeira edição era um livro humilde e está cheíssima de gralhas.
Daniel – Sim. Tinha mais de 300 gralhas.
Onésimo – Por detrás daquelas gralhas todas e humilde apresentação envergonhada estava de facto o contador de histórias.
Daniel – Com boa intenção, percebia-se talvez isso. Sim.
Onésimo – Aquilo não eram restos da tua modéstia que aprendeste na tua experiência? Quando assinavas Augusto de Vera Cruz. Que era o teu pseudónimo.
Daniel – Exactamente. Augusto de Vera Cruz.
Quando se fala de modéstia, não sei muito bem o que se quer de dizer com isto. Muito menos a falar de modéstia a meu respeito.
Onésimo – Reconheces que não és modesto; és orgulhoso?
Daniel – Sou. Acho que toda a gente tem de ser orgulhosa, se não não faz nada. A não ser que estejamos a falar de santos.
Gosto de ter eco. Gostei imenso de te ouvir chamar-me essa série de nomes. Apesar de seres um amigo. Mas sei que és um amigo sincero.
Onésimo – Posso estar a dizer umas mentiras…
Daniel – Posso é não me exibir, e realmente não sou exibicionista. Isso sei que não sou. Tenho aquele orgulho de gostar de ver uma coisa bem aceite. E bem lida e apreciada.
Onésimo – Não conheço ninguém que tenha escrito um livro e que diga: Eu escrevo um livro porque eu quero apanhar porrada.
Daniel – Com certeza. Estamos absolutamente de acordo
Que mais querias que eu dissesse?
Onésimo – Sobre a Verdade das Coisas é um mundo muito da tua Maia. Nós tínhamos tido a experiência do Cristóvão de Aguiar sobre o universo do Pico da Pedra. Aquelas pequeninas histórias, sem terem um nexo lógico, sem haver uma sequência. Pequenos retratos, de um mundo riquíssimo, interessantíssimo, mas com um olhar muito curioso, muito perspicaz, um olhar incisivo sobre aquele mundo.
Daniel – Sim. Reconheço que o olhar é de facto de quem conhece bem a realidade, de quem viveu na Maia muitos anos. Poucos anos vivi fora da Maia. Dez mais ou menos, no total.
Onésimo – Não sei como isso foi possível. Foi em Santa Maria?
Daniel – Sim. Mas muitas histórias que inventei, depois vim a co-nhecer histórias reais semelhantes às que tinha inventado. Isso nasce do grande conhecimento das pessoas. Histórias que, sem eu saber, tinham acontecido.
Onésimo – Há uma história do livro Sobre a Verdade das Coisas que eu já contei tanta vez! Tanta vez! E digo sempre que é de um livrinho precioso do Daniel de Sá. Daniel conta essa história.
Daniel – É a do romeiro?
Onésimo – Sim, conta lá.
Daniel – É uma história rigorosamente autêntica. Era um rapaz amigo, um homem que ia sempre de romeiro. Tinha uma amizade nas Furnas. Uma amizade no feminine. O marido dessa amizade tomava conta de matas. Naquele tempo roubava-se muita lenha nas matas.
Ela foi buscá-lo para ir para casa dela. Ele disse: Ó mulher não, que estou de romeiro. Claro, o homem não resistiu, foi mesmo. Não resistiu a ir. Nem resistiu ao que se supõe.
No outro dia, foi-se confessar ao Padre Afonso Quental, o velho que conheceste, com certeza, tio do teu prefeito [no Seminário], Afonso de Quental, nosso comum amigo.
Onésimo – Espero que a história não tenha sido contada por ele.
Daniel – Não. Foi o próprio romeiro.
Foi-se confessar no outro dia para seguir bem a romaria. Quando disse ao senhor padre o que tinha acontecido, o Padre Afonso tentou dar-lhe uma descompostura:
– Isso não se faz. Então, de romeiro!
– Estava cá de romeiro, Senhor Padre! Pois eu até despi a roupa.
O Padre Afonso teve muita dificuldade em acabar de confessá-lo.
Onésimo – Dizias sempre que este livro era uma primeira experiência. O que é que te levou agora, de repente, a surpreender-nos com esta nova edição? Há alguma alteração? Além das gralhas.
Daniel – Há. Ponho aí mais três contos de animais.
Onésimo – O livro não custa três contos?
Daniel – Não. Talvez venha a custar metade. Para já, os direitos do autor e editor são a favor de Timor. Mas além das gralhas, mais do que um, me levou a reeditar este livro.
Onésimo – Quem?
Daniel – Tu foste um deles. Dizias de vez em quando: reedita aquilo, reedita aquilo.
Onésimo – E era verdade.
Daniel – Foste tu uma das pessoas que me levaram a reeditar o livro.
Onésimo – Bom! Ilha Grande Fechada… é esta?
Daniel – É esta?
Onésimo -É fechada?
A autonomia, o isolamento, a insularidade, etc.
Daniel – Mas isso é teu.
Onésimo – Aquilo?
Daniel – Parece que sim.
Onésimo – Insularidad, é espanhol.
Tu é que viveste em Espanha.
Daniel – A insularidade, isto não é espanhol.
Onésimo – Estás numa ilha da Maia.
Daniel – Desculpa lá! Esta coisa de ilha! Vocês, tu, o Vamberto, e outros, têm a mania de me dizer que es-tou isolado na Maia. Hoje em dia, já não há isolamento:
Onésimo – Em 50 anos, para o Daniel de Sá, foi a viagem mais longa que ele fez na vida. Vir da Maia até à Ribeira Grande.
Daniel – Para compensar a tua, que foi a mais curta que fizeste: da América até aqui.
Mas, em qualquer parte não se está isolado: Eu estou rigorosamente informado. Tu, na América, sabes mais coisas sobre São Miguel do que eu. Não te admires que, estando na Maia, saiba coisas de todo o mundo. Estou rigorosamente informado.
Onésimo – Há uma coisa interessantíssima na tua obra. Tu estás na Maia, mas estás num mundo imenso. E é isso que na tua obra é extremamente interessante.
Fala-me da tua ilha grande fechada.
Daniel – Só uma coisa. Talvez esteja no mundo todo, precisamente por estar na Maia. Se eu corresse tanto mundo como tu corres (tu estás no mundo todo à mesma, nesse sentido cultural), mas eu talvez tenha a necessidade de abranger o mundo todo, para compensar um pouco o estar na Maia.
A Ilha Grande Fechada tem uma coisa interessante. Aquilo foi feito a partir de um título. Não sei se é muito comum. O título é de um quadro do Tomaz Vieira, de quem sou muito amigo e admirador. Gostei tanto do quadro e do título, que resolvi pensar num romance para aquele título. O romance nasce rigoro-samente do título, Ilha Grande Fechada. Há o homem que emigra. A imagem do romeiro que fecha a ilha no circuito da romaria.
Embarca naquela frase que tu citaste e melhoraste…
Sair da ilha é a pior maneira…
Onésimo- Não melhorei. É outro ponto de vista. Tu achavas e achas que tenho um visão muito romântica da ilha. Tu dizias: “Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”, e disse-te: se calhar é a melhor maneira de ficar nela.
Daniel – E o que tu disseste ficou tanto no ouvido que já não estava a dizer o que eu tinha escrito, mas a dizer o que tu plagiaste
Onésimo – O João de Melo tem um texto que eu o cito como do João de Melo e, afinal, era meu: Os Açores: lugar de pouca terra e muito mar. E um dia fui descobrir que era meu e eu andava a citar o João de Melo, e afinal era meu.
Daniel – E afinal não é teu nem do João de Melo. É meu. Isso é anterior ao João de Melo e anterior a ti. Eram os artigos que escrevia de sátira no jornal, nos anos oitenta, contra o Dr. João Bosco: A brincar, porque tenho amizade e consideração por ele.
Chamava-lhe D. João Zero, rei de muito mar e pouca terra. E prosseguia o título, imitando o D. Manuel e até D. Afonso V, um título muito comprido que incluía Algeciras e aquelas terras todas espanholas de que já não me lembro o nome.
Onésimo – A tua ilha grande fechada não é fechada. A tua ilha é aberta?
Daniel – A minha ilha é aberta. Sabes que, muitas vezes, combatemos o que não somos. Qualquer pessoa que combate a imoralidade é porque, pelo menos, pensa que não é imoral. Muitas vezes fazemos as coi-sas que não somos. Quando combato a ilha fechada é precisamente porque estou convencido que não estou fechado nela. O escritor normalmente vai contra aquelas coisas que ele usufrui mas que os outros não usufruem.
Quem nos está a ouvir deve-nos ter percebido.
Onésimo – Sou do Pico da Pedra, mas percebo algumas coisas.
Daniel – Sim, sim.
Onésimo – É o único defeito do Daniel. É não ser do Pico da Pedra. Ninguém pode ser perfeito.
Daniel – O único defeito é achar que não é defeito o não ser de lá.
Onésimo – Nessa altura que andavas a publicar essas coisas da ilha grande fechada, tiveste um papel muito importante e muito interessante. Ali, na Maia. Tu e mais um grupo de gente da Maia. Honra seja que colaborou contigo. Foi a Balada. Que foi um foco de actividade cultural aqui em São Miguel. E depois, foi lá que muita gente se reuniu e que hoje está muito em contacto, mas ali se conheceu, naqueles encontros.
Como é que nasceram ?
Daniel – Nasceu muito simplesmente de uma conversa com o Afonso Quental. Dissemos: Vamos fazer aqui um encontro de escritores. Se não tivermos ajudas de ninguém, fazemos com os que estão em São Miguel. Se nos ajudarem um bocadinho, fazemos com os das outras ilhas. Se nos ajudarem mais ainda, fazemos com os que estão no continente português. Se nos ajudarem mais ainda, fazemos com os que estão no estrangeiro.
A ideia nasceu assim. Não tive qualquer dificuldade em apoios. Do Governo Regional, da Câmara Municipal, de empresas particulares Os apoios sobravam em relação às necessidades. Sabes que os nossos amigos Duarte Mendes e o João Martins com um simples telefonema resolviam tudo. A tua passagem, e tu vinhas; o Norberto Ávila vinha; o Manuel Machado vinha da Noruega.
Talvez um pouco inspirado nas jornadas literárias que tinham sido feitas aqui em Ponta Delgada :
Onésimo – Aqui na Ribeira Grande foram as primeiras.
Daniel – Sim. Nessas coisas não há geração espontânea. Quem fez as coisas não fui eu. Tive apenas a ideia de fazer. E fiz, no sentido de juntar vocês lá. Mas aquilo foi muito bonito, porque se juntavam as pessoas.
Onésimo – Nessa altura, a Maia era uma… ilha pequena aberta?
Daniel – Exacto. Tenho uma pessoa que sei que vai fazer parte desta série, que é um dos amantes dos encontros de escritores da Maia e nosso amigo comum. É o Dr. José Guilherme Reis Leite. De vez em quando fala-me daqueles encontros da Maia.
Onésimo – Por que é que isto se fechou?
Daniel – Fechou-se porque as coisas têm um tempo exacto de acontecer. Além disso, o Afonso deixou de ser o dono do Solar de Lalém. Agora é um casal de alemães que é dono daquilo.
Depois nasceu a ideia de se fazer noutras ilhas. Já se fez na Terceira. Já se fez em São Jorge. Também é interessante que se faça nas outras ilhas. Embora tenha sido o pai da ideia, não tenho direito nenhum à paternidade registada na filiação dos encontros. Qualquer um o pode fazer, porque não registei o nome nem nada.
Onésimo – Voltamos aos teus livros. Vou falar de um livro que tem um peso especial, a Crónica do Despovoamento das Ilhas. Primeiro, aquilo só é possível porque tu andaste aí a catar imensa informação.
Daniel – Tanta, que tu pensavas que parecia que eu tinha inventado a maior parte dela, mas era rigorosamente verdade. Ainda me criticaste: – Estás a inventar coisas e que depois um tipo cita como se fosse verdade. E é tudo rigorosamente verdade. Excepto aquilo que eu digo explicitamente que é ficção. Foi um livro que gostei. Mas deu trabalho. Mas também uma coisa que não dá trabalho, não dá tanto gosto. Tive de juntar informações do Gaspar Frutuoso com cartas régias contidas no Arquivo dos Açores. Além disso, também gosto de imitar a linguagem de qui-nhentos e de seiscentos. Entrar naquele estilo mais ou menos ao ritmo daquela época. É bonito ter a obra completa com um bocadinho de esforço.
Onésimo – O estilo, apanhaste-o:
“Na grande felicidade em que estava nem via como a vida se encurtava nela, porque os dias eram horas bem pequenas e assim de tão breve ser cada um, breve a vida ia ficando”.
Repito: “Na grande felicidade em que estava, nem via como a vida se encurtava nela, porque os dias eram horas bem pequenas e assim de tão breve ser cada um, breve a vida ia ficando”.
A cadência, o ritmo, tudo isto…
Além da informação tu foste beber…
Daniel – Isto dito por ti até parece que está bem escrito.
Não tens aí mais um bocadinho para ler?
Onésimo – Tenho. Aliás, antes de vir para cá, fiz fotocópias das páginas e isto está sublinhado da primeira leitura. Da carta de Inês da Cunha:
“Foi meu pai tão contrário a esse amor, que me fechou em casa como em prisão de condenado à força. Di-zendo que antes queria ver-me mui triste por uns dias do que desgraçada a vida inteira. Minha mãe não podia consolar-me, ainda que quisesse e ela não queria. Por me achar tão pecadora com ele só de pensar nele que nem Madalena, Senhor, terá sido tanto. Mas tive artes por uma noite de exprimir o amor que em ardências tais nos faz mais cegos do que os olhos sem olhos e mais sem nada ouvir do que os surdos completamente. De fugir da minha prisão e abrigada nos braços dele escondendo tanto dos meus pais que mal me lembro dos caminhos andados em loucura tão doce. Só sabendo de mim nessa fuga que foi ela feita como em voo de uma carroça puxada por dois cavalos muito fortes até Aveiro, onde embarcámos para Lisboa. Daí tomámos rumo para a vila de Ponta Delgada, na cara-vela Medina. Parecia estar a ver o corpo de Deus connosco que nos deu tão bom vento de nordeste que em seis dias avistámos Santa Maria e ao outro de manhã chegámos ao destino da viagem”.
Quem escreve assim não é gago.
Daniel – Está bem. Realmente não sou gago. Às vezes fazem esta observação, de imitar o estilo da época. Acho que é um bocado fácil. É um processo fácil. Pelo menos para mim resulta-me fácil. É um pouco como os pintores que são capazes de imitar um Greco. Sou capaz de imitar quem tenha escrita muito marcada. A escrita dos cronistas de quinhentos. Se reparares no ritmo, faz lembrar o ritmo da Menina e Moça. Pego no ritmo e tenho uma certa facilidade de repeti-lo.
Os pintores mais fáceis de imitar são, por exemplo, um El Greco, um Van Gog, um Picasso, muito característicos. O pintor academista que não tem nada de especial, talvez não seja tão fácil de imitar. É fácil identificar um texto com uma época, embora não seja rigorosamente igual aos da época. A sonoridade, o ritmo faz de facto lembrar.
Onésimo – Dizeres que é muito fácil fazer é como o Eusébio a explicar como é que marcou um golo: O tipo passou-me a bola, dali da ponta direita, vi a baliza aberta, dei-lhe e cabeça e meti golo. É o gago a dizer assim: Isso, isso… é mui.. mui…to fá…fácil pa … ara tu …tu dizeres.
Daniel – Pois bem. Se queres, é difícil. Confesso que digo sem o tal orgulho que todos temos. Realmente é assim. Tenho uma certa facilidade em escrever… Por exemplo, o Bartolomeu. Tive uma pessoa que dizia que eu tinha levado dois anos a fazer aquilo. Afinal, foram não sei se 4 ou 5 semanas. Porque depois de apanhar o ritmo… Aliás, também naquela altura ainda conseguia fazer serão até às cinco da manhã a trabalhar.
Onésimo – Descontando as sestas.
Daniel – Sim.
Onésimo – Vamos voltar à escrita de ficção. Mas depois tu atreves-te a fazer ensaios, como um com o título A Criação do Tempo e do Bem e do Mal. É Nietzsche do Para Além do Bem e do Mal.
Foste atrevido…
Daniel – Não sei se fui atrevido. Eu escrevi para mim mesmo. Sempre tive a mania de pensar. Desde peque-nino.
Onésimo – É perigoso.
Daniel – Pois é. Era mesmo criança. Lembro-me de pensar em coisas terríveis. Era muito miúdo. Bastante criança. Que iria acabar o petróleo, qualquer dia haveria tantas pessoas no mundo que já não cabiam. Ainda não tinha ouvido falar do malthusianismo nem nada que se parecesse. É como no exercício físico que faz desenvolver os músculos. O pensar faz desenvolver aquela inteligência que todos temos. De maneira que sou um vulgar de Lineu a tentar pensar para mim mesmo, a tentar resolver os meus próprios problemas, que ficaram na mesma insolúveis e irresolutos.
Fiquei satisfeito, porque fiz uma tentativa de chegar ao cume do Evereste, embora não tenha passado, sei lá…
Onésimo – Tiveste outra aventura, outra incursão atrevida: E Deus Teve Medo de Ser Homem.
Daniel – Mas aí há duas coisas. Há o fascínio que tenho pela figura de Cristo-homem, sem ter em conta se é ou não filho de Deus, independentemente do factor religioso. Tenho esse fascínio enorme pela figura humana de Cristo.
E tenho, ao mesmo tempo, um fascínio enorme pela cultura judaica, desde a antiguidade até aos nossos dias. E a admiração imensa pelo judeu mais conhecido que é Jesus Cristo. O livro nasce dessas duas componentes, de Jesus-homem, mas rigorosamente o homem, independentemente do Deus em que, como cristão, acredito. E juntei os dois naquela parabola – que não passa de uma parabola – de Auschwitz e que não é preciso identi-ficar nem adjectivá-la.
Onésimo – Aliás começas o E Deus Teve Medo de Ser Homem com uma epígrafe. Tens uma história judaica logo no início.
Daniel – Exactamente.
Onésimo – Tens uma epígrafe muito interessante. Lembras-te da história?
Daniel – Ajuda-me, se te lembras melhor.
É sobre a noite e o dia. Uma parábola muito pequenina. Um professor que pergunta aos alunos: Quando é que começa a ser noite? Um diz: É quando sol se põe. Outro: É quando aparece a primeira estrela. O professor diz que não. É quando ele não vê em cada homem um amigo. Creio que é mais ou menos assim.
Onésimo – Quando começa a ver em cada homem um amigo.
Daniel – Estamos a misturar tudo. É quando é que começa o dia. Quando nasce o sol, quando desaparece a última estrela. Então, o professor diz: – É quando o homem começa a ver em cada homem um amigo.
Onésimo – Aliás, é muito judaica. E esta é muito judaica e muito americana. O padre católico, o pastor protestante, e o rabino, estão a discutir para saber quando é que a vida começa. O padre toma a posição tradicional: É no momento da concepção. O pastor protestante, muito liberal, diz que é no momento do nascimento. O rabino diz: – Não, é quando o meu último filho vai para a Universidade.
Daniel – Já agora… Não sei se tenho ainda tempo… Para te consolar a ti, que tens o complexo de não saber música, não saber cantar.
Onésimo – Gostava de cantar.
Daniel – Vou-te contar uma história muito interessan-te, quando estive nos combonianos em Espanha. Fui ajudar um pároco, numa paróquia perto de Valência. Ninguém cantava naquela igreja. E eu tinha pena daquilo. Cheguei a pensar num discurso para dizer ao D. Francisco – o homem a quem dedico E Deus Teve Medo de Ser Homem: “Não tenho jeito para ensinar a cantar, mas o D. Francisco se calhar ainda é pior do que eu. Se quiser, ensino aí umas cantigas aos velhinhos”. Foi o discurso que pensei, mas tive vergonha de lhe dizer.
Dois ou três dias depois, o homem diz-me que estava um bocado aborrecido, porque o seu orfeão tinha sido convidado para ir cantar à Polónia, mas só tinha quatro sopranos. Era maestro. Professor de música na Universidade de Valência. E era esse homem que eu queria ensinar a cantar. Todos temos os nossos casos.
Onésimo – Cá está. O nosso orgulho aí cai pela base, quando nos acontecem coisas dessas.
Escrevi no final de um destes dois livros – E Deus Teve Medo de Ser Homem ou A Criação do Tempo, do Bem e do Mal) – “interessante maneira de pensar, muito pessoal e independente”.
É uma das coisas muito curiosas. Tu estás ali na Maia. O nosso primeiro encontro, estava eu no Seminário… foi eu a defender o evolucionismo e tu a tomar uma posição conservadora.
Daniel – Sim.
Onésimo – E tens uma maneira de pensar tão pessoal. Tudo aquilo passa pelo crivo da tua reflexão pessoal e tens posições que não são necessariamente heterodoxas, mas não são muito ortodoxas.
Como é que te situas perante tudo isso?
Daniel – Dou justificações a mim mesmo. Tudo o que tento explicar aos outros é o que tento explicar a mim próprio. Não tento resolver os problemas aos outros, mas ter resposta para mim próprio. Estou a pensar para mim. Quem aderir, aderiu. Quem não aderir, paciência. Não podemos esperar que todos adiram às nossas ideias. Mesmo se estás a pensar na relação com a hierarquia católica, com o que está definido moralmente, mesmo sobre este aspecto, nós só somos responsáveis apenas perante a nossa consciência. E só o que a nossa consciência nos diz o que é bem ou mal é que é bem ou mal, teologicamente falando, moralmente falando, como tu quiseres. Não me preocupa minimamente. Procuro, não é bem, não ser atrevido. Não gosto de afrontar ninguém directamente. Mas gosto de ser eu a pensar. Tudo o que eu disser é o que eu penso. Não faço favores a ninguém.
Onésimo – Essa independência é de facto notável.
Outra coisa curiosa é tu escreveres ensaios e não perderes o fio, esse lado de escritor. Trouxe uma citação extraordinária do E Deus Teve Medo de Ser Homem, sobre a memória: “Porque a memória é que torna possível a prevalência do sofrimento. Como um amigo uma vez dissera: Esquecido, é como se nunca tivesse existido”.
É uma belíssima frase.
Daniel – Vê lá. Quando é que começaste a existir? Nós todos temos menos dois ou três anos de vida, não nos lembramos desses anos. Só começamos a existir quando temos uma certa memória de nós mesmos que nos dá a individualidade.
Há pessoas que perdem a memória. Há casos clínicos. Pessoas com 10, 15, 20 anos com perdas de memória em semi-coma, podem viver até aos cem anos, mas só viveram trinta. Essas pessoas não chegam a viver: A memória é que nos faz viver.
Onésimo – O tempo está a passar, disseram-nos que está a acabar.
As Duas Cruzes do Império – outra incursão, outra aventura extraordinária, porque na pele do Padre António Vieira.
Daniel – É engraçado. Vou resumir: Vieira é uma pessoa por quem tenho uma admiração enorme e uma curiosidade enorme, desde os quatro ou cinco anos. Minha irmã, que já andava na escola, falou do Padre António Vieira. E eu perguntei quem era?
Era um padre, mas não sabia explicar-me. Perguntei:
Mas, minha mãe conheceu o Padre António Vieira? E ela: Conheci. Foi meu vizinho.
Onésimo – Mas era mentira…
Daniel – É a única virtude que reconheço em mim é não ser mentiroso. Fiquei desesperado. Mas fiquei sempre com aquele eco do António Vieira. E há anos que tinha o gosto imenso de tentar imitar um sermão do Padre António Vieira. Já houve pessoas que o confundiram com um sermão autêntico do Padre António Vieira.
Onésimo – Gostaria de pegar aqui em mais uns textos, mas vamos terminar.
Tu estás na Maia. Hoje um livro, se não tem ninguém a promovê-lo, não tem grandes possibilidades. Tens cartas de Fernando Namora, de Vergílio Ferreira. Tens um leitor atentíssimo no Brasil, o Luiz António Assis Brasil…
Daniel – Tenho-te a ti na América.
Onésimo – Eu só faço isso por velha amizade… Um leitor, um crítico, às vezes mauzinho, o Fernando Venâncio, tem escrito coisas simpatiquíssimas sobre os teus ensaios. Até o padre Victor Melícias escreveu. Escreves só para ti, ou pensas neles?
Daniel – Sim, mas também agora foste pôr em público o que o Fernando Venâncio me escreveu… O Onésimo é muito amigo do Fernando Venâncio… Depois pede-lhe desculpa, se achares que deves pedir desculpa.
Onésimo – Esses leitores. Escreves só para ti, ou também escreves para eles?
Daniel – Tu é que me aconselhaste a enviar o livro ao Fernando Venâncio. Quando ofereço um livro, é a pessoas de quem gosto de conhecer o pensamento. E o Fernando Venâncio é dos escritores que mais admiro, em termos de qualidade de escrita e pensamento.
Onésimo – Vamos terminar. Estás na Maia. A Maia não é uma ilha grande fechada. É uma ilha pequena aberta. Afinal, não é preciso sair da Maia para se estar no mundo todo. Não é preciso sair da Maia para se ser universal.
Daniel – E fica entendido que o meio caminho entre Providence e a Maia é a Ribeira Grande.
Onésimo – Muito bem. Obrigado por teres vindo até aqui. Sei que é um enorme acontecimento tu vires à Ribeira Grande. Era impossível levarmos-te a Ponta Delgada.
Sou um leitor assíduo, fiel, e só gostava de chamar a atenção dos telespectadores para o escritor. Um escritor que tem, ao longo destes anos, acumulado uma obra invulgar, de um nível de reflexão pessoal, com uma qualidade de escrita extraordinária. Se mais não ficasse desta conversa do que uma vontade de as pessoas irem às livrarias procurar um livro do Daniel… A única coisa que posso dizer é que experimentem e, já agora, comecem pelo Sobre a Verdade das Coisas. É fácil de começar, porque depois de se começar vai-se aos outros.
Daniel – Posso acabar num instante. Só gostava de dizer que eu é que devia estar aí. Entre nós, não há elogios. E costumo te definir quase como irmão.
Onésimo – Não vamos cair naquela dos dois compadres – As pessoas mais importantes da minha freguesia são duas. Uma, é o meu compadre; a outra, diga lá o meu compadre quem é.
Obrigado, por teres vindo até aqui.
Regressa à Maia. Mereces uma sesta.
Telespectadores, amigos, até ao próximo programa.
Obrigado por terem estado connosco.
(Entrevista realizada em Janeiro de 2001 para abrir a série “Onésimo à conversa com…”, iniciada nesse mês na RTP-Açores, e reemitida em 27 de Maio de 2013)