Um título destes convoca de forma mais ou menos directa duas obras de Dias de Melo: Pedras Negras (1964) e A Montanha Cobria-se de Negro (2008). E nesta escolha há, obviamente, aquele grau de subjectividade e arbítrio que assiste sempre a cada leitor. Vendo a questão sob uma outra perspectiva, poderia dizer que me limitei a seguir as indicações de caminho que cada obra também sempre aponta aos seus leitores. Aparentemente, não haveria razões suficientes para fazer de Pedras Negras (PN) o termo inicial de um percurso como o aqui se enuncia. Na verdade, se A Montanha Cobria-se de Negro (MCN) constitui o último livro publicado em vida por Dias de Melo, Pedras Negras não é, na carreira do autor, um livro inaugural, nem sequer em prosa, nem sequer sobre o Pico e os seus baleeiros – para isto teríamos de recuar aos poemas de Toadas do Mar e da Terra (1954) e passar ainda pelas crónicas de Mar Rubro (1958).
Mas eu poderia aduzir como razão para a inclusão de PN no meu título a centralidade dessa narrativa na obra do autor, o lugar-de-síntese que ela efectivamente constitui: porque em PN está praticamente tudo, ou quase tudo, o que Dias de Melo escrevera até então e viria a escrever depois, reformulando tópicos, retomando e situações e recontextualizando-as. Em PN está a transfiguração literária de todo um mundo insular num tempo determinado (o autor preferia falar de «reprodução» em vez de «transfiguração», como deixou claro numa longa e esclarecedora entrevista concedida a Vamberto Freitas e incluída em O Imaginário dos Escritores Açorianos), um mundo ameaçado pelas contingências do presente e pela memória do passado: a voz do avô de Francisco Marroco traz ao conhecimento dos mais jovens a experiência do Ano da Fome, as leituras do padre Velho recuperam a história dos cataclismos vulcanismos e do início do povoamento, tudo isso alimentando um medo difuso que se infiltra no mais íntimo de cada um; está lá, em PN, o sonho do homem com outros mundos e a raiva de quem se sente expulso da própria ilha, e ainda essa experiência fundamental da descoberta e conhecimento do outro que a viagem proporciona; está lá o gesto solidário no microcosmos multicultural da baleeira Queen of the Seas, mas também a versão açoriana do homem lobo do homem na figura do emigrante Albano Passarinho, exemplo lapidar de como a vítima de ontem pode tornar-se o carrasco de hoje. E, traço particularmente relevante, trata-se de uma narrativa (também) do regresso, coisa tão pouco frequente na literatura açoriana: o regresso permite o ajuste de contas final entre a Ilha e o rebelde Francisco Marroco, que ousara desafiar a fatalidade do destino insular. E, como se sabe, toda a revolta será castigada. O tempo retomará o seu ciclo destruidor, voltarão as secas, as fomes e a doença; a inveja (essa expressão portuguesa do ódio, como escreve Marcello Duarte Mathias), as intrigas e as negociatas sujas encarregar-se-ão de completar a destruição natural: o protagonista será aniquilado, a punição atingirá culpado e inocentes, à boa maneira da tragédia grega. E tudo isto numa urdidura linear e clara, servida por uma linguagem transparente que combina o registo lírico com o trágico, o cuidado com a expressão familiar, popular.
Finalmente, eu poderia justificar o meu título com o facto de PN constituir a primeira ficção narrativa de Dias de Melo, deste modo abrindo o arco que se encerra com MCN. De resto, uma e outra obra põem em evidência nos respectivos títulos a presença e a força, física ou simbólica, do espaço. Além disso, separadas por intervalo de escrita de cerca de quarenta e quatro anos, as duas obras têm a interligá-las muito mais do que a proximidade dos títulos ou a do universo baleeiro representado; uma e outra, embora em diferentes graus de importância e consequências, convocam o tempo histórico da Segunda Guerra Mundial (em PN, coincide já com o final da acção, em MCN é o quadro temporal em que decorrem os acontecimentos); em ambas se movimenta a personagem funesta da Chico Gaudêncio mais os seus lacaios, ao serviço de interesses obscuros, contra o bem-estar dos baleeiros e o exercício da justiça social; ambas as narrativas têm o seu desfecho na vila, símbolo do poder civil. É certo que em MCN encontram os baleeiros, na pessoa do Delegado Marítimo Romero da Silva, um poder detentor de um sentido de equidade e justiça que contrasta com a imagem que passa em PN (do ponto de vista de exercício do cargo, aliás, o Tenente Romero da Silva antecede o Delegado Marítimo que prenderá os baleeiros em PN, como Dias de Melo refere em nota de rodapé). Mesmo assim, o final de MCN não deixa de expressar um pessimismo (o autor falaria de «desânimo») que parece atestar a descrença no triunfo da justiça, perante a evidência de que engrenagem social acaba sempre por triunfar e destruir os de baixo. E vale a pena confrontar o final de cada uma das obras e verificar como o recurso a um registo simbólico do espaço acentua no leitor a impressão de pessimismo frente ao fracasso dos projectos individuais ou colectivos:
«Francisco Marroco arrastou-se até à vila para ver os baleeiros e o filho – o seu filho – por dentro das grades. Acompanharam-no, lacrimosas, a nora e a filha, ainda solteira e os netos amedrontados.
Sentia-se repentinamente velho, muito velho, muito velho.
Regressou a casa para sempre sucumbido.
Era noite.
E naquela noite, como em tantas outras, não havia estrelas no céu.»
(PN)
«O Lima já navegava há momentos. Acabava de desaparecer para lá do Castelete, com a sua carga de passageiros, entre todos o Segundo Tenente Romero da Silva e a família a bordo…
A Montanha cobria-se de negro…»
(MCN )
De Pedras Negras a A Montanha Cobria-se de Negro: como se a ficção de Dias de Melo, depois de algumas derivas temáticas regressasse ao seu ponto de partida para reequacionar velhas questões e reavivar a presença de companheiros de outrora, agora nem sequer transfigurados no interior da escrita, veja-se, por exemplo, o caso de João Flores em MCN.
Em 1979, por ocasião dos 25 anos de vida literária/editorial de Dias de Melo, o picoense Tibério Silva, então jovem estudante de Direito, publicou no n.º 5 da revista A Memória da água-viva um longo ensaio sobre “o ciclo da baleia” em Dias de Melo; a designação não era original, aparecera em Julho desse ano no Diário de Lisboa, num artigo assinado pelo escritor terceirense J. H. Santos Barros, que a aplicava aos livros Mar Rubro, Pedras Negras e Mar pela Proa; para esclarecer um pouco o sentido que aí se dava a esse ciclo, convém ter presente que por essa altura Dias de Melo já publicara Cidade Cinzenta (1971), conjunto de crónicas e contos de referência micaelense e citadina, cujo reino não pertence, portanto, ao mundo da baleação.