O texto de Tibério Silva, marcado ainda por uns restos de fervura ideológica própria da época, não deixa, todavia, de apontar alguns dos aspectos que, sem esforço, a crítica tem vindo a reconhecer na escrita de Dias de Melo: uma visão do mundo marcada pela dicotomia radical entre exploradores e explorados e, por outro lado, o compromisso assumido pelo autor, pelo narrador no texto, para com os mais fracos, as vítimas do sistema social. Escrevia Tibério Silva:
« Dias de Melo recria de uma forma única e plena de autenticidade o ambiente, a linguagem, o imaginário de uma pequena povoação açoriana fechada sobre si mesma, em que a taberna, a casa dos botes, a igreja constituem microcosmos onde as pessoas vão construindo o seu quotidiano. (…)
Para Dias de Melo há fundamentalmente duas classes de indivíduos – os exploradores e os explorados. E a sua obra é, no plano da literatura açoriana, das primeiras a assumir esse problema e a enfrentá-lo em cada página. E mais: o narrador adere à luta do explorado – o baleeiro (figura alegórica) –e lança mãos a uma tarefa que este ciclo da baleia consubstancia: relatar em páginas vibrantes a odisseia de homens que encontram a sobrevivência no punho do remo e no cabo do arpão.»
Além de constituir um elemento a mais para a divulgação do escritor por ocasião da efeméride que, em Lisboa, não passou de modo algum desapercebida, o texto de Tibério Silva teve ainda o mérito de motivar uma extensa carta de Dias de Melo, que publicaríamos no número seguinte da revista. Nela, o escritor começava por afirmar que lhe parecia injusto excluir do chamado ciclo os poemas de Toadas do Mar e da Terra (TMT) avançando depois para outras considerações que constituíam a formulação explícita de um projecto de trabalho, desenvolvido e a desenvolver ainda. Escrevia Dias de Melo:
«Esta designação [ciclo da baleia] parece como que a determinar um momento, um certo número de escritos que, na minha vida de escritor, modestíssima, já acabou. Ora, há ainda muitas istórias de baleias e dos baleeiros do Pico por escrever. Se me fosse possível, gostaria de as recolher a todas e, trabalhando-as literariamente, ir um pouco mais longe…fazer um pouco mais do que aquilo que está feito…(…) Aliás, caso me chegasse tempo para tanto não me limitaria à recolha desse material. Recolheria tudo: istórias dos iates, dos grandes marinheiros da minha Terra, metendo-me pelo Passado dentro, até ao mais longe possível, ao tempo da navegação à vela, nos barcos do Pico, de boca aberta (…) istórias da vida dura, difícil, das nossas gentes; (…) festas (apesar de tudo), folguedos, bailos, cantigas que se cantavam à viola, e os anos bons, os Reis…; lendas, istórias fantásticas de bruxas, feiticeiras, lambusões…Enfim, tudo o que faz parte do Passado do Povo do Pico. Na certeza de que tudo ajudaria os novos a compreender a nossa maneira de ser, a respeitar a memória dos seus Maiores, a conhecer a nossa própria História. Parece-me que é importante.
(…) Mas importa falar com os antigos, investigar, fixar o que se oiça – e, para fixar, ter-se-ia que gravar. Recordo: para isso, comprei um gravador. E muito pouco tenho feito. Pouco – ou nada. O tempo que me falta… a saúde que me foge… e agora de novo a morar fora.»
Teria Dias de Melo alguma razão no que se refere a TMT, se pensarmos em termos temáticos e particularmente na “Canção do Baleeiro”, uma espécie de poema narrativo-dramático que relata um episódio de baleação, já com fortes elementos referenciais e a utilização da linguagem popular. Mas os leitores críticos centravam a sua atenção nas crónicas e nas narrativas, passando ao lado de uma experiência poética que reutilizava os modelos técnicos da poesia popular, de que existem outros exemplos, entre nós. O mais próximo do tempo de Dias de Melo seria a Festa Redonda (1950), de Vitorino Nemésio), com o aproveitamento da estruturas das cantorias terceirenses, ultrapassando, no entanto, o registo etnográfico graças a uma forte criatividade verbal e imagística. Pelo despojamento e simplicidade de tom, pelo discurso apelativo a uma certa idealização rural de vida fraterna, TMT aproximava-se muito mais de Em Louvor da Humildade, publicado trinta anos antes, em 1924, e da autoria de Armando Côrtes-Rodrigues, que assinava as “Palavras Finais “ do livro de Dias de Melo, referindo que este, « sem preocupações de escolas literárias, preso ao encanto da sua Ilha [afina] pela viola do povo os ritmos do seu sentir. É esta a melhor valia dos seus poemas ilhéus.»
A carta de Dias de Melo lança ainda luz sobre o modo como a sua escrita, mesmo a ficcional, obedece a um projecto de fidelidade e arranca do concreto chão picoense, da terra e das suas gentes, cultura, história e imaginário, e como tudo isto alimenta uma diversidade expressiva que vai da crónica ao romance, do conto à investigação histórica, à crónica de viagem. E explica ainda como em Dias de Melo a evocação e a ficção se cruzam na sua escrita, por vezes se articulam mesmo de modo indestrinçável.
O último parágrafo citado da carta leva-nos directamente a uma obra como Na Memória das Gentes (Livros I, II e III. 1985 e 1991), um notável trabalho em que, como confessava o autor, «gentes do mar [ lhe disseram ] muito da terra e gentes da terra, mulheres até, muito [lhe disseram] do mar». O resultado é um imenso painel colectivo em que os relatos autobiográficos, pontuais, se entrecruzam e interpenetram na composição final de um complexo tecido social e histórico: a penúria de meios materiais e as dificuldades para obter esses poucos de que se dispunha; a ausência de cuidados médicos e o recurso a remédios vindos da… América, alvo de tantas fugas e sonhos e palco de não menos desenganos e dramas. E mesmo os textos da oralidade recolhidos no Livro III, os contos, os pequenos episódios, atestam o sentido de sobrevivência de quem teve de inventar ferramentas e utensílios para dominar a terra e os mares e, no mesmo pé, desenvolveu o seu próprio sistema de efabulações, de mundos simbólicos e imaginários com que pôde enfrentar os demónios da sua solidão.