Desse mesmo ano de 1979 é o livro de contos e crónicas Vinde e Vede (VV). Título surpreendente, como escrevia Santos Barros no Diário de Lisboa? Talvez. Mais ainda se acrescentarmos a isso a sequência de epígrafes iniciais (cinco) colhidas no texto bíblico. Acrescentava o articulista:
«Retrato fiel da sociedade açoriana, não poderia escapar ao autor, como a nenhum açoriano escapa, o factor religioso, o enorme peso da igreja católica nas ilhas. Daí que a pressão bíblica, que noutros casos poderia ser entendida como facilidade no jogo de títulos – que não são apenas os da “bolsa” – surja aqui como exigência de transformação dessa realidade, quiçá proposta duma leitura diferente do texto evangélico.»
Mas tudo isso deve ser ainda compreendido à luz do texto introdutório escrito por Dias de Melo e que funciona como uma espécie de manifesto programático pessoal sobre a concepção da arte, da literatura em particular, e do escritor em termos concretos. Ou seja: não há arte sem compromisso com o homem, com a sociedade, um «compromisso que é também imperativo da consciência colectiva do homem.» (VV, p.13) O escritor torna-se, neste contexto, o profeta (laico, civil) que denuncia o presente, a sua desumanidade e injustiças para e, ao mesmo tempo, anuncia um futuro radioso em que as estrelas brilharão no céu social, em contraste com o que sucedia no final de PN. O discurso e os acontecimentos narrativos ganham nalguns textos de VV uma força apelativa, um tom denunciatório e a atestação de uma violência social que anteriormente apenas se encontravam nalguns momentos de Dias de Melo. Se poderá haver aqui um espírito do tempo, há também a consequência de outro aspecto: VV é um livro cujo universo social se deslocou para leste, para S. Miguel, para a Ilha latifundiária, como escreve o autor. E se Dias de Melo já afirmara que em Cidade Cinzenta alterara a sua escrita porque a realidade de que se ocupava era outra, escreve igualmente no texto introdutório de VV que, ao observar de novo a sociedade micaelense após algum tempo de ausência em Lisboa, tivera de reformular profundamente alguns textos que integram VV, escrever outros de novo e deitar fora definitivamente outros ainda. Camponeses, assalariados, pescadores, operários compõem o núcleo desse universo humano micaelense, a contas com um quotidiano de injustiça e prepotência, de miséria também, sob o pano de uma caridade muito pouco cristã, muito pouco evangélica, onde nem mesmo um «bom sacerdote» consegue impor a luz do Evangelho à boa consciência dos ricos. Mas sem deixar passar as lutas travadas pela transformação social, na esperança de um dia que será o da vitória final: «o da emancipação e da libertação definitiva dos trabalhadores humilhados do dia inteir».
Gregory McNab chama justamente a atenção para a diferença de perspectiva que enforma o modo de actuação dos baleeiros picoenses e dos pescadores e camponeses micaelenses: a dimensão heróica na actividade dos primeiros, contra o dramatismo trágico da vivência dos segundos, aniquilados por um sistema social de que não conseguem escapar-se, submetidos a uma ordem ou desordem cujo maior efeito de degradação humana é atestado pela venda da força de trabalho e, no limite, a venda do corpo num comércio em que o sexo se troca por pão.
Percorrido, assim, um universo social (aqui só muito sumariamente aflorado) seria altura de um reencontro interior do autor consigo próprio com o universo literário. O Autógrafo, romance de 1999, textualiza essa experiência da escrita, na sua dimensão criativa e institucional, articulando em dois planos temporais distintos o presente e o passado do escritor Rodrigo Pinho. A 15 de Dezembro de 1996, Rodrigo Pinho faz a apresentação pública do seu mais recente livro, Farrapos de Espuma; o aparecimento inesperado de um jovem a pedir um livro autografado para Ana Rosa provoca um terramoto íntimo no escritor e deixa a descoberto as ossadas de uma experiência ocorrida cinquenta anos antes, exactamente: o seu primeiro livro, Sou Pescador e Cavador e sobretudo a grande paixão vivida por Rodrigo Pinho e Ana Rosa e que um mal-entendido e suspeições por parte dele tinham deitado a perder de forma abrupta. Agora, perante o filho de Ana Rosa, a saudade e o remorso deixam escritor de rastos, mas tudo é sem remédio já. História de uma paixão, evocada quando o escritor vive já a solidão e a velhice, O Autógrafo é também em certa medida “um romance de formação”, o relato do processo de crescimento e aprendizagem do mundo social e literário, as amizades que suportam esse crescimento e o incentivam, a descoberta do corpo e da sexualidade. E sem renegar as origens sociais do escritor, que o título desse primeiro livro [Sou Pescador e Cavador ] ostensivamente põe em relevo, mas partindo delas para se formar na consciência do dever de solidariedade para com todos os humilhados do mundo.
Mesmo lançando mão de um narrador que não participa na história, não é difícil ver como em O Autógrafo se projecta uma forte parcela autobiográfica do escritor Dias de Melo, independentemente dos disfarces e das máscaras que a escrita sempre interpõe entre a realidade e a ficção: de novo a recuperação dos anos quarenta, anos fundamentais de formação na Horta, o eco da Segunda Guerra Mundial, o ambiente de solidariedade intelectual que possibilitou a criação da Associação Cultural Académica (Novembro de 1944) e de que Dias de Melo foi um dos fundadores e participantes, a descoberta da imprensa, etc, aspectos que um cotejo mais demorado ajudaria a confirmar. Sendo assim, tudo se combina, afinal: a forte dimensão social e histórica da ficção de Dias de Melo encontra a sua explicação última no retrato psicológico e intelectual que de si mesmo deixa registado em O Autógrafo.
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O lugar-comum diz que a melhor homenagem a prestar aos escritores é lê-los. Certo. Mas se não os trouxermos à luz do dia, se não agitarmos os seus nomes, eles continuarão a morrer eternamente nas estantes, como escrevia José Pedro Guerreiro num texto comovido, alguns anos após a morte de Santos Barros. Ao agradecer mais uma vez o convite que me foi dirigido para participara nesta sessão, espero poder ter contribuído um pouco para o melhor conhecimento de Dias de Melo e espero que isso possa contribuir para outras leituras da sua obra.
Bibliografia
BARROS, J. H. Santos (1981), “Dias de Melo – 25 anos de vida literária”, in O Lavrador de Ilhas–I. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura, pp. 143-146. Publicado originalmente no jornal Diário de Lisboa, 1979, Julho 16.
FREITAS, Vamberto (1992), O Imaginário dos Escritores Açorianos. Lisboa, Edições Salamandra.
MCNAB, Gregory (1987), “A aventura açoriana na obra de Dias de Melo”, in ALMEIDA, Onésimo Teotónio, Da Literatura açoriana – subsídios para um balanço. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura.
MELO, Dias de (1980). “Ainda o ciclo da baleia – uma carta de Dias de Melo”, in A Memória da água-viva – revista açoriana de cultura, 6. Lisboa, 37-38.
SILVA, Tibério (1979). “O ciclo da baleia” in A Memória da água-viva – revista açoriana de cultura, 5, 8-13