Se pensarmos que, desde os dezoito anos, deixara de lado sucessivos romances inconclusos, entenderemos, talvez um pouco melhor, que contas seriam aquelas, que assim ajustou. E, se atentarmos nas sucessivas reedições da sua poesia, verificaremos que os volumes constituem organismos vivos, coerentes, nos quais os diversos textos se inter-respondem, contando “histórias” diferentes, consoante as seriações que o autor lhes conferiu, em diversas edições, nomeadamente nas recolhas poéticas, obedecendo a criteriosas reordenações poemáticas em círculos (Lira de Bolso, As Lições do Fogo), ou em ciclos (Sonetos do Cativo), jogando com a simbologia dos números quatro, sete e nove, de clara reminiscência pitagórica, cabalística ou dantesca. O ritmo, a musicalidade, a mestria das rimas assonantes, o superior domínio da metáfora e da aliteração, coadjuvadas pela antítese, ou mesmo pelo paradoxismo, conferem uma personalidade singular à poesia davidiana, de perfeito recorte clássico, obedecendo, todavia, a princípios sui generis, nomeadamente ao nível da metrificação, fazendo de David Mourão-Ferreira, porventura, o mais clássico dos nossos poetas modernos.
Tal como outros grandes criadores, não se deixou espartilhar em cada um dos géneros literários configuradores da sua Obra. Esta edifica-se sobre um complexo sistema de vasos comunicantes, orquestrados pela memória interna, em contraponto de harmonizações sinfónicas ou diafónicas. Com efeito, os elementos itinerantes, as construções em eco, como justamente as designou Eduardo Prado Coelho, constituem um dos aspectos mais interessantes da implícita ou explícita rede comunicante, como é, nomeadamente, o caso de Os Quatro Cantos do Tempo e d’ As Quatro Estações, ou do «Romance das Mulheres de Lisboa no Regresso das Praias», cujo primeiro verso — “Em terra, tantas gaivotas!” — inverte e subverte o título do seu primeiro volume de ficção narrativa, considerado como de novelas, mas que resultou de um trabalho de reconstrução de um anterior romance. O onirismo d’Os Amantes e Outros Contos encontra-se inscrito em embrião no conto “A Recordação de Panflakaio”, que postumamente publicámos. “Sonho que sonho o que sonho” é um verso do poema “Argumento”, inserto em Os Ramos Os Remos, o qual traduz precisamente a situação onírica que sustenta a arquitectura do conto “Os Amantes”. Conquanto seja o erotismo o filão mais reconhecido na Obra de David Mourão-Ferreira, esta está longe de se reduzir àquela temática. Outras linhas se entrecruzam na memória, na meditação sobre a morte, no culto dos lugares, não apenas como sagradas relíquias do tempo, mas ainda como espaços de reflexão do sujeito, em processo de perda. Lembrando um conhecido poema, de Matura Idade – “E por Vezes” -, a angústia torna-se obsidiante imagem de fundo, que traz para o primeiro plano um sujeito que se vê através do olhar feminino e que, por vezes, se encontra e que, por vezes, se perde. Tântalo que não sacia a sede — destino que um deus lhe segredou. Fulguração do instante, revolta pelo fogo que se extingue, que não dura, mas que resiste, sendo apenas o que resta do desejo de eternidade. Na poesia davidiana, tal como a leio, o sujeito não ama porque existe, mas para que exista. E existe para sentir, por vezes, o prazer de se dissolver e ciclicamente renascer. As formas de diluição no mar, água primordial, por vezes metáfora da mãe e memória do tempo antes do tempo, ou as formas de diluição em terra como a evasão, a viagem, a mudança, serão ainda uma outra forma de perdição e renascimento de quem se procura procurando, por vezes ganhando e, por vezes, perdendo ao jogo da vida. Condição trágica de quem, ironicamente, fica preso à busca da liberdade, como um Ícaro condenado aos trabalhos de Sísifo: ”há-de tudo prender-se aereamente solto”, como lemos na “Ars Poetica”, inserta no livro Do Tempo ao Coração. Os Ramos Os Remos inscrevem, a partir do título, a fixidez e a flutuação. Ramos da árvore que prende, remos do barco que deriva. De uma outra forma, mais directa, o sujeito assumirá a condição de errância em Jogo de Espelhos: “Sente-se, desde sempre, / mais estável no movente que no fixo”. Talvez por isso, David nos deixa, como herança, em “Testamento”, a fluidez do verbo, a instabilidade do sentido, o calor da lava e o frio da cinza.
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Imagens: PPorto dos Museus,
Instituto Camões