Nos braços, as chagas. No corpo ascético as feridas vivas da heresia. Assim se injuria a alforria do verbo, a voz subtil da consciência.
Passeava sozinha na sua Luanda.
“Esquadrinho a cidade alta luandinense. O miradouro que tem uma das melhores vistas da cidade – com uma espectacular paisagem donde se podia ver o nascer dos raios solares, a farfalharem as linhas marítimas. Pelo que observo só ficou o nome.
Agora a cidade alta não pode ser…nem espreitada.
O poder controla a visão do povo. A natureza não pode ser desfrutada por todos…o povo se rendeu…e os turistas não se queixam! Vasculho com o meu olhar curioso a cidade baixa luandinense, mas não encontro. Aonde esta a cidade baixa¨“
Assim, como ela esquadrinhamos os espaços que nos moldaram. Deambulamos sozinhas, sem escoltas ou especial protecção iluminando os corredores dos espaços, que nos tentam roubar, mas que ainda nos são próprios, para sempre nossos. Essas vielas, onde cravamos as nossas histórias quando todos dormiam. Essas canadas e cidades, pequenas freguesias, becos sem nome, que amamos apesar das discordâncias e dos impropérios rasgados, em horas de angustias e desânimo.
Isabel Ferreira, autora de O Guardador de Memórias que esteve recentemente em Toronto para apresentar a sua ultima obra, prefere pensar que o assalto foi mera coincidência. A coincidência de quem se encontra no lugar errado no momento errado. ¨Os casos de assaltos em Luanda são frequentes, diz-nos a autora “e quero acreditar que tudo não passou de uma coincidência”.
Mas ela sabe que as palavras na folha são cartazes para o mundo – nem tanto para o seu povo, que tem pouco acesso à literatura ou por mero desinteresse, porque o consumismo e as necessidades básicas tornaram-se preocupações primárias, ou porque o sistema apura subtilmente a sua censura. “Temos um grande problema em Angola. Temos falta de infra-estruturas e de dinheiro. Apesar das universidades, o dinheiro é para satisfazer as necessidades básicas e não para ler.”
Mesmo assim os livros queimam-se. “No caso do Nirvana os livros foram todos comprados pelo Ministério e depois queimados. Agora faço como me disse o Urbano Tavares Rodrigues: primeiro lança lá fora, depois em casa”.
As consoantes e vogais na plenitude da sua função: libertação e morte. Ela mostra-me as cicatrizes. E eu, que vivo no canto onde a liberdade tem asas, olho os golpes que ali vão ficar para lá de todos os tempos, na sua história de mulher e soldado dos parágrafos.
“Entre a cadeia de culpa e a expiação do pecado alheio a manhã vai ao adro. Cada um, à sua maneira, comenta a tragédia.”
Liberdade de expressão?
“Estive 2 meses em Angola. Infelizmente fui alvo deste assalto. Fui esfaqueada, mas prefiro acreditar que foi algo que aconteceu por acaso. Não quero acreditar que fosse por causa do livro, mas senti tal pelo que disse a comunicação social”.
Isabel Vicente Ferreira, nascida em Luanda está actualmente a viver em Portugal, esteve em Toronto a convite da Associação dos Jovens Angolanos. Através do departamento de Língua Espanhola e Portuguesa da Universidade de Toronto apresentou o seu último trabalho de ficção O Guardador de Memórias, uma colecção de histórias, que têm como pano de fundo a música angolana e alguns dos seus mais celebrados intérpretes. Um olhar sobre a vida em Angola e, sobretudo das suas mulheres. Um observar aguçado da condição feminina, um contemplar da relação do seu povo com o poder, dos seus modos de vida próprios, onde fórmulas de sobrevivência encontraram raízes, sem nunca perderem a beleza e o puro misticismo das gentes. Para quem desconhece África O Guardador de Memórias é indubitavelmente uma relíquia que transporta o leitor para mundos, que nos deviam ser mais familiares, pela proximidade histórica dos nossos povos, por passados que convergiram para bem ou para o mal.
A escrita de Isabel Ferreira nasce da “consciência real do tempo, que se exprime através dos nossos personagens. Quero ser esta consciência de falar da nossa realidade mesmo que ele seja incómoda”.
A diáspora e a literatura
“A receptividade deste meu livro foi muito boa no estrangeiro. Como todos sabemos ninguém é profeta na sua terra.” A gargalhada é honesta e partilhada.
“Reparo que há um interesse cada vez maior em saber mais dos escritores da diáspora, mas ainda se conhece pouco daquilo que se faz noutros países de expressão portuguesa. Portugal é o país que mais acolhe os artistas africanos, mas necessitamos de estudos globais sobre a literatura que se faz em África. Já há algumas universidades com trabalhos de investigação importantes. Porém, necessitamos de mais.”
Ficou o desafio.
Isabel Ferreira conta já com uma interessante colecção de obras que vão da poesia, à ficção e ao teatro.
Na poesia é autora de Laços de Amor, Caminhos Ledos, Nirvana e a Margem das Palavras Nuas. Na ficção Fernando D’Aqui e o Guardador de Memórias, para além de estar presente em diversas antologias.