De Cecília Meireles e Dos Açores
Toda essa gente existiu sempre comigo. A paisagem é como se fosse a do meu quintal.
(Cecília Meireles em carta a Armando Côrtes-Rodrigues)
Vamberto Freitas
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A Lição do Poema: Cartas de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues foi publicado há uns bons anos (1998) pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada, e na altura recebeu alguma atenção, mas limitada a uma ou outra recensão, comentário ou mera referência de passagem em revistas universitárias de pouca circulação, se bem que essenciais à legitimação de qualquer obra. Antes de todas estas referências, merece grande destaque a tese de doutoramento de Margarida Maia Gouveia, da Universidade dos Açores, intitulada precisamente Cecília Meireles: Uma Poética Do “Eterno Instante” (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002), permanecendo a fonte mais autorizada da açorianidade em toda a obra de Cecília Meireles. Que a publicação destas cartas demorou, a ninguém deve surpreender, pois um espólio literário estará sempre dependente de um estudioso que um dia encontra, organiza e faz sair o que permanecera nos baús ou no escuro. Foi o caso destas cartas da eminente poeta modernista brasileira de declarada e orgulhosa descendência açoriana (micaelense) quando no decurso de outras investigação sobre a obra de Armando Côrtes-Rodrigues o Professor Celestino Sachet, de Santa Catarina, na altura a desenvolver a sua actividade académica aqui no arquipélago, encontrou este riquíssimo tesouro tanto da cultura açoriana como da brasileira. Aliás, não tenho qualquer dúvida que, com uma outra apresentação desta obra no país-irmão, qualquer um dos antigos ou presentes editores de Cecília Meireles agradeceria a oportunidade de lançá-la entre, afinal, os que mais teriam a desfrutar da prosa privada da autora do épico Romanceiro da Inconfidência.
Estas cartas contêm algumas das fontes mais preciosas da origem da sua poesia, da sua visão do Brasil da época, do seu dia-a-dia, das suas obsessões, do seu lugar no mundo e das suas referências literárias universais. Filha de Matilde Benevides Meireles, nascida em S. Miguel, levada para o Brasil com meses de idade, falecida no Rio de Janeiro quando a autora tinha apenas três de idade, as suas “memórias” da ilha açoriana, que ela só visitaria durante uns breves dias em 1951, foram “imaginadas” desde sempre através de estórias contadas pela avó, nascida na Fajã de Cima e emigrada no Brasil a fins do século XIX, Jacinta Garcia Benevides, quem mais influenciaria a sua consciência de mulher e, eventualmente, poeta. Não é pouco para o esclarecimento de uma obra multifacetada, como é definitivamente a de Cecília Meireles. A sua amizade epistolar com Côrtes-Rodrigues, um dos maiores poetas e escritores açorianos de sempre, resultaria nestas cartas que, para além da informação biográfica que nos oferecem, são autênticos poemas em prosa, a arte epistolar moderna no seu melhor em língua portuguesa.
A Lição do Poema contém 246 cartas dirigidas de 29 de Janeiro de 1946 a 3 de Março de 1964 (ano em que Cecília Meireles faleceu) ao poeta vila-franquense, então residente e professor em Ponta Delgada. Não posso imaginar um destinatário mais apropriado do que o autor de Em Louvor da Humildade: Poemas da Terra e dos Pobres. Amigo de Fernando Pessoa, antigo colaborador da Orpheu sob o pseudónimo de Violante de Cysneiros, regressado à ilha pouco depois numa opção consciente e voluntariosa, a sua solidão cercada de mar por todos os lados irmanava-se perfeitamente com a de Cecília Meireles, também “ilhada” no Rio de Janeiro, mas incessante viajante real e imaginativa por todos os mares e latitudes, como ela daria consistentemente conta ao longo da vida e obra. Algumas destas cartas são de uma extensão e profundidade quase ensaísticas, um mergulho sustentado no interiorismo mais íntimo da sua autora, no qual concentra o seu universo vivido e sonhado na solidão de quem está rodeada de muita gente que pouco ou nada têm a ver com a sua postura existencialista no seu tempo e mundo muito particulares. Família, marido e filhas, amigos e colegas, política e cidade, cultura popular e erudita, literatura, folclore, teatro e música — todos os amores de Cecília Meireles convergem aqui, provocando ou amenizando o grito constante de alegria ou socorro que faz de qualquer grande artista a voz de si próprio e do seu tempo, a consciência clara do cerco ou labirinto em que vive toda a humanidade. Para Cecília Meireles, o seu Brasil aparece aqui como mero porto de descanso, era a casa de repouso com o mundo todo sempre em volta. É certo que a romantização dos “tristes trópicos” há muito que tinha sido desconstruída e terminada. Restava-lhe, o que não era pouco, o espanto da sua história e cultura, principalmente a que nascia do seu povo mais humilde, desde tradições multiculturais, linguagens e festejos quotidianos à religiosidade encoberta com que todos tentam justificar a sua sorte ou má-fortuna na vida. A partir da correspondência com Côrtes-Rodrigues, até as festas do Espírito Santo no Brasil passariam a ser tema das suas investigações e intervenções. Ouro Preto era um dos lugares do seu fascínio e misticismo — história, arquitectura, arte e religiosidade — levando-a a trabalhar cinco anos na pesquisa e depois na escrita e publicação do poema épico Romanceiro da Inconfidência (1953), no qual um dos seus protagonistas é precisamente um açoriano da Terceira, traidor de Tiradentes. Publicou em vida alguns 35 volumes, incluindo folclore, temas de literatura infantil e teatro, e em 1944 saiu com Poetas Novos de Portugal.
Só por deduções poderemos ter uma vaga ideia do que lhe escrevia o poeta açoriano, mas tudo indica que passou esses anos a queixar-se da sua situação pessoal e profissional, inclusive das suas obrigações no liceu que o privavam do seu trabalho de poeta e escritor. Cecília Meireles diz-lhe constantemente que é um desperdício enorme andar ele a mal gastar o seu tempo nessas tarefas para ele aparentemente desagradáveis. De resto, também se deduz que ele lhe ia pondo a par do que e de quem escrevia nos Açores, assim como de questões culturais açorianas em geral. Uma das grandes descobertas que Cecília Meireles faz da nossa literatura foi a grande obra Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, que ela passa então a mencionar e a citar com entusiasmo e admiração Depois o nome mais conhecido que entra na conversa seria o de Vitorino Nemésio, com quem a poeta passaria algum tempo no Rio de Janeiro, frequentando a então a recém-fundada Casa dos Açores, inaugurada nos anos 50 pelo autor de Mau Tempo no Canal. Após a sua breve visita de pouco mais de uma semana a São Miguel, fala nas cartas com intimidade redobrada ante lugares, coisas e gente, manifestando as saudades ainda mais sentidas que tudo agora lhe provoca. O seu humor nas conversas com Côrtes-Rodrigues torna-se constante, imitando foneticamente o sotaque micaelense e aludindo à rivalidade entre as ilhas.
Depois de Cecília Meireles, outro grande escritor brasileiro aprofundaria e alargaria consideravelmente esse diálogo connosco, muito mais embrenhado nas nossas questões literárias, de presença constante e prolongada entre nós: Luiz Antonio de Assis Brasil, de Porto Alegre. Santa Catarina e o Rio Grande do Sul são também por ela constantemente referidos devido à presença açoriana e ao seu legado cultural e espiritual, particularmente, como já aqui foi referido, o persistente culto ao Divino Espírito Santo. Feliz a cultura que é abraçada com tanta ternura e lealdade.
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A Lição do Poema: Cartas de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues (Organização e Notas de Celestino Sachet), Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998.