De João Brum e Da Diáspora
Vamberto Freitas *
João Pereira da Costa Brum nasceu na Silveira, Pico, em 1938, e faleceu a 23 de Fevereiro na sua ilha natal. Tinha 73 anos de idade quando lhe chegou a hora da partida, e foi-se quase no anonimato e na maior solidão imaginável, mas que por ele tinha sido deliberadamente escolhida após anos de combate em várias frentes. Emigrou para a Califórnia aos trinta anos de idade a meados da década de 60, já com uma firme e consequente formação intelectual, que na altura só o seminário de Angra do Heroísmo poderia oferecer e oferecia à sua geração, essa que nos deixaria um legado intelectual até hoje marcante para a nossa identidade açoriana. João Brum, como era geralmente conhecido, levou consigo alguma experiência na imprensa das ilhas (foi revisor e articulista ocasional num vespertino da Horta), o que lhe asseguraria na altura um lugar privilegiado entre nós na Diáspora quando tempos depois fundou um dos melhores semanários da imigração lusa na Califórnia, colocado de imediato num triunvirato jornalístico, dois deles permanecendo de grande alcance entre os leitores de língua portuguesa que restam nos EUA: Portuguese Times de New Bedford e o Luso-Americano de Newark. É certo que The Portuguese Tribune vinha já enquadrado numa longa tradição da nossa imprensa nos EUA, mas distinguiu-se durante alguns anos pela sua audácia editorial, elegância discursiva, e linguagens renovadas em todas as frentes socioculturais e até políticas no que concernia às nossas comunidades do Pacífico nos anos decisivos da sua mudança interna e no renovado relacionamento com a mãe-pátria partir do 25 de Abril de 1974. Não creio exagerar se reafirmar neste momento que João Brum deixou um dos mais valorosos contributos à cultura portuguesa na América, e à consciencialização cívica daqueles que acolhiam e liam as suas páginas.
Antes de mais, devo abrir aqui uma advertência: fui amigo, colaborador e companheiro de estrada de João Brum desde a fundação do seu semanário em Julho de 1979, na cidade de São José, no norte da Califórnia, e onde se concentra desde sempre a maior e talvez mais dinâmica comunidade de origem açoriana no oeste americano. A nossa relação nem sempre foi fácil, nem na Diáspora nem quando ele regressou aos Açores: eu não o poupava nalgumas “críticas” quanto à gestão do seu jornal em momentos visivelmente críticos, nem ele esquecia esses meus reparos. Mas foi, talvez mesmo por isso, uma amizade constante e de respeito mútuo inabalável. Na direcção do seu jornal alheou-se por demais da vida prática, mantendo a riqueza da palavra imprensa e descurando quase todo o resto. Pouco mais de cinco anos depois do seu aparecimento, o semanário passava, por questões financeiras supostamente insanáveis nas suas mãos, a outros que o haviam também acompanhado de perto. Foi uma transição pouco pacífica, e para João Brum mais do que dolorosa, mas teria sido ele próprio quem havia traçado o seu destino. Fundaria logo de seguida um outro semanário, o Portugal/USA, de pouca dura pelas mesmas razões. Haveria, alguns anos mais tarde, um terceiro projecto, The Portuguese Chronicle, que nunca levantou voo. Sobre esse possível e último regresso de João Brum ao jornalismo comunitário encetei um longo diálogo com ele, que foi publicado em forma de carta na revista Gávea-Brown e depois num dos meus livros sobre jornalismo e cidadania. Conseguiu ainda, entretanto, completar com sucesso um mestrado em línguas cuja tese se intitula The Other Side Of The Island/O Outro Lado Da Ilha, título com o qual iria muito provavelmente ser publicado em tradução pela Salamandra (Lisboa), não tivesse a editora encerrado pouco tempo depois. A partir daí, a sua vida pessoal desfazer-se-ia em ambiente de radical carência material e sobretudo emocional, acabando uns anos mais tarde no seu regresso desamparado aos Açores. Continuou com alguma colaboração esporádica em jornais do Pico e suplementos literários aqui em S. Miguel. Antes da sua partida para cá, escrever-me-ia a 20 de Fevereiro de 2002: “Este inverno envelheci mais depressa que o habitual. Vem sobretudo de dentro e expande-se pouco a pouco”. Dizia-me ainda nesta e noutras cartas de projectos de escrita em que estava empenhado: Rewriting of the American Dream: a quest seen through the eyes of an Azorean immigrant, De Como se Faz Jornalismo Cultural Para Uma Comunidade de Imigrantes Açorianos, e Haja Saúde e outros monólogos imperfeitos, o título que daria a uma colectânea dos seus editoriais no PT e depois às suas colaborações n’O Dever, das Lajes do Pico. Era para me enviar os originais destes livros, mas nunca chegou a fazê-lo. Estava a chegar assim ao fim uma vida muitíssimo atribulada — mas tinha já deixado um jornal cuja memória se mantém firmemente entre a nossa geração, continuando a ser publicado na Califórnia quinzenalmente e no qual a cultura e comentários em geral continuam a usufruir de espaço e liberdade. Escrevi extensamente sobre o Portuguese Tribune na altura em que existiu sob o comando de João Brum e imediatamente depois da sua transição para outras mãos e outros propósitos, assim como publiquei uma extensa entrevista com ele no Diário de Notícias, em 1981, “A Imprensa de Língua Portuguesa nos Estados Unidos”. Mais do que falar de si e do seu próprio jornal, João Brum fazia uma análise aprofundada da imprensa imigrante portuguesa da época, e das dificuldades globais enfrentadas por quem fazia sair com dignidade um periódico que não condescendia nem com a ignorância atávica nem com influentes compadrios comunitários bem instalados.
“Os imigrantes — dizia ele a certa altura da nossa conversa — formam todos eles um mundo à parte, diferente, que determina precisamente a atitude do jornalista, dos responsáveis pelo jornal. Em Portugal o leitor aproxima-se do jornal; aqui verifica-se o contrário: o jornal terá de ser consentido por um processo de ir ao encontro da audiência, por persuasão e até sedução. O Portuguese Tribune escolheu, até, caminho mais difícil: ir para o leitor até certo ponto e daí deixar que ele faça o resto do percurso de aproximação, o que leva o seu tempo e gera muitas vezes desilusão”. As suas palavras quase que traçavam já o seu próprio destino, mas por uns anos a palavra escrita nas páginas que fundou e dirigiu mantiveram-se muito acima do que havia sido o jornalismo de língua portuguesa na Califórnia, dirigiam-se sem apologias aos grupos mais civicamente activos e a toda uma geração que então começava a penetrar nas universidades, ou tinha levado de Portugal hábitos e apetência intelectual acima da média. Foi um projecto, em termos estritamente editoriais, arrojado e arejado. Se essa fase do Portuguese Tribune foi devidamente arquivada algures, a sua consulta vai surpreender pelo modo como tentou ir ao encontro harmonioso da tradição e da inovação.
Os Haja Saúde, os seus editoriais semanais que um dia espero ver publicados num dos livros que ele organizava e seleccionava, irritavam muitos leitores pelas melhores razões intelectuais e biográficas. De estilo profundamente clássico e numa linguagem que de imediato lembrava o seu passado de seminarista bem formado, diziam do que pensava da comunidade e do cansaço que era semana a semana informar e formar o seu público-alvo, a tentativa, sempre, da “aproximação” mútua de que nos falava na referida entrevista. Numa das cartas que me enviaria do seu infeliz repouso no Vale de San Joaquim, dizia-me que os últimos dois capítulos do Haja Saúde seriam intitulados “Diálogos com Gente Discreta” e “Conversas Destroçadas”. Seriam, pois, a síntese perfeita de si próprio e de como entendia o seu papel e espaço de jornalista nas nossas comunidades espalhadas por uma vasta e muito diversificada geografia humana. Resta agora todo esse espólio — fino e
duradouro.
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João Pereira da Costa Brum 1938-2011. In Memoriam
(*) Vamberto Freitas, escritor,crítico literário e professor da Universidade dos Açores. Suas vivências como açoriano, emigrante na Califórnia e, hoje, residente na Ilha de São Miguel estão presentes numa profícua e respeitada produção literária, bem como na difusão de tantas vozes açorianas e na defesa da consolidação de um sistema literário açoriano.