De Joel Neto e seu novo realismo
Duas advertências ao leitor: não se preste muita atenção à capa deste novo romance de Joel Neto, Os Sítios Sem Resposta, por mais artística que seja, um menino com uma bola debaixo do braço olhando meio perplexo, creio que para lugar nenhum, ou então tentando adivinhar o seu futuro de olhos brilhantes e bem abertos, e nem se interprete ipsis verbis as palavras que cito aí em epígrafe, aliás não escritas na narrativa propriamente dita, mas sim numa “nota e agradecimentos” no fim do livro. Da já substancial obra do terceirense Joel Neto — a ficção de O Terceiro Servo e de O Citroen Que Escrevia Novelas Mexicanas, a “crónica” de A Banda Sonora para um Regresso a Casa, entre alguns outros livros deliciosos sobre a doença desportiva nacional — conheço o suficiente para saber do seu gosto e gozo artístico em toda e qualquer escrita sua. Por outro lado, não se confunda nunca, não se associe os cómicos chamamentos à mais profunda e duradoura rivalidade entre portugueses durante todo o século passado, e agora ainda mais em intensidade psiquiátrica quando o país já está num divã clínico por muitas outras razões e motivos, ou seja a rivalidade Benfica-Sporting, o que não raras vezes leva à bolacha, como se diria na minha querida e pitoresca terra de origem, e tal como não podia deixar de acontecer numa das mais hilariantes cenas de Os Sítios Sem Resposta. Como afirmou recentemente na sua coluna literária do JL o romancista e crítico Miguel Real, trata-se aqui de algo bem mais sério, bem mais profundo, bem mais relevante na nossa ficção nacional da actualidade, especialmente a de Joel Neto com firmes raízes açorianas mas formado e com residência fixa, como também diria Urbano Bettencourt noutro contexto muito próprio num dos seus livros de poemas, no Continente — ou em “Lisboa”, melhor dito, tal como referimos o destino dos nossos marinheiros que optaram por viver a leste do “paraíso” atlântico.
Os Sítios Sem Resposta é um romance de características formais muito próprias, mas cuja temática nos é de todo familiar. O seu protagonista, de nome Miguel João Barcelos, em muito se assemelha ao autor Joel Neto, mas não se suponha ou se deixe que essa provável dose de autobiografismo influencie de modo algum a nossa leitura. É certo que os Açores, desde as obras inaugurais da nossa literatura, têm sido sempre uma obsessão tanto para quem parte como para quem fica. Não se deve este facto marcante dessas nossas melhores páginas em qualquer género a um suposto “ensimesmamento” e muito menos ao “regionalismo” que tanto fere as sensibilidades dos nossos “universalistas”, ou dos “cidadãos do mundo”, a expressão mais falsa e pretensiosa no vocabulário intelectual dos que, por vezes não conhecendo as suas raízes natais, pretendem conhecer e pertencer ao resto do mundo. Por minha parte, estava convencido até há bem pouco tempo que a nova geração de escritores açorianos residentes fora do arquipélago não esqueceria nunca essa Tradição literária e cultural, como efectivamente não esqueceram, levando-os quase sempre a uma fina cortesia de reconhecimento aos seus antecessores e referências intelectuais, mas partindo fulgurantemente para a sua situação num mundo radicalmente transformado, com as suas ansiedades existenciais agora no centro da sua arte, visto os temas desses seus antecessores ilhéus estarem — ou parecerem — ultrapassados, história escrita e encerrada. Quero dizer, com todas estas considerações, que este romance de Joel Neto é tudo isso, e é ainda muito mais, é a sua prosa ficcional numa fase de total maturidade, a vivência circular do seu protagonista entre as ilhas e a capital do país, em que toda a sua vida é revista e repensada numa actualidade que, do mesmo modo, tanto parece progredir nos seus espasmos de modernidade incerta como parece regressar ao solo das origens, esse que tudo condiciona na vida reinventada de um açoriano perfeitamente integrado nos grandes meios, mas nunca liberto do seu passado, que nem sequer é passado e nunca morre, nas palavras de um grande escritor norte-americano quando se referia à sua própria história comunitária. Se refiro aqui a segurança — ou maturidade — desta nova escrita de Joel Neto, quero transmitir a ideia de que num processo de “evolução” cultural e literária de uma nova geração tentar renegar ou mesmo matar o seu passado nesse processo de reinvenção pessoal e depois artística só significa que as origens terão necessariamente de renascer em cada uma das nossas vidas, permitindo assim uma ideia mínima de quem somos, de onde viemos e para onde gostaríamos de ir. Os Sítios Sem Resposta representa aqui a realidade mais forte do que a vontade dos que gostariam de tudo transformar a seu gosto ou conforme as suas preferências socioculturais, ou até filosóficas, representa a imutabilidade da força das nossas raízes para além das aparentes mudanças ou transformações que nos levam a uma noção de libertação individual. O passado, uma vez mais, persegue-nos sempre, quer o aceitemos ou não. Podem crer: se o jogo de metáforas que são as querelas entre os dois grandes clubes lisboetas de futebol oferece-nos a comédia da nossa fatuidade diária e atávica infantilidade emotiva, ou talvez mesmo a ausência de sentido nas nossas vidas contemporâneas, a dor vivencial de cada dia nos nossos relacionamentos íntimos, familiares, profissionais, assim como a vida por entre as incertezas que nos impõe uma sociedade absolutamente à deriva, são o fundo temático e a criatividade linguística de Os Sítios Sem Resposta. A sociedade é aqui, parece ser, muito mais protagonista do que os seus personagens, meras peças secundárias na engrenagem em que toda uma geração está apanhada e presa, “crise” sendo uma das mais amenas, se bem que repetidas, palavras neste romance.
“Onde andavam os homens de Lisboa, — diz o narrador resignado aos dias do nada, em que já nem o futebol lhe comovia, e muito menos o seu emprego medíocre numa seguradora qualquer com sede na capital — sabia-o eu bem: não estando a assistir a filmes tontos sobre feiticeiros e dragões, estavam ali, aos murros num simulador — e, entretanto, as mulheres ocupavam-se das compras, com aquele ar ressentido de quem não é devidamente apreciado”.
Todos os prazeres aqui nunca são doces, são quase sempre amargos, pagos ou sofridos — casamento, sexo, vida em família ou a vida num gabinete qualquer de trabalho tornados uma prisão mais ou menos voluntária. Nem me vou alongar na descrição da existência citadina de Miguel João Barcelos, estamos numa Lisboa de movimento fútil e felicidade fingida. Toda a trama de Os Sítios Sem Resposta gira em volta desse quotidiano e dos regressos quase indiferentes do protagonista de visita à família nos Açores, a uma freguesia próxima de Angra do Heroísmo, também já vivendo o “realismo” do nosso tempo, em que a disfuncionalidade familiar e societal em geral é o que mais sobressai na narrativa. Sim, os Açores continuam a chamar a si estes seus ausentes agora em mundos que um dia tudo prometiam, só que os reencontros são quase tão dolorosos como a dia a dia na deprimida metrópole no outro lado do mar. Todas as forças que assolam um grande meio cercam, naturalmente noutra dimensão, a vida quotidiana de uma pequena ilha: pais que vivem alienados sob o mesmo teto, irmãos na luta contra a dependência química e sujeitos ao apoio familiar onde se refugiam os mais fracos, um jogo entre Benfica e Sporting o momento mais solene da comunidade. Será este talvez o primeiro romance da crise global em que o nosso país, em todos os seus recantos, está mergulhado, o romance em que todas as gerações juntam a sua infelicidade do passado ao presente. Há muito tempo que esta geração a meio da ponte e da vida não nos presenteava com um romance tão abran
gente e significante.
Ernest Hemingway disse um dia que o treino jornalístico era muito útil ao escritor de ficção — se abandonado a tempo. Não conheço nem tento conhecer o que pensa Joel Neto da sua vida profissional e de escritor. Só lhe pedia, se me for permitido, que mantenha agora o rumo na sua escrita criativa (nunca deixando as suas leves e deliciosas crónicas jornalísticas) a bem da literatura portuguesa da sua geração, e ainda mais a bem da grande literatura que continua a ter os Açores e a nossa “vida em ilha” como referências inescapáveis.
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Joel Neto, Os Sítios Sem Resposta, Porto Editora, Lisboa, 2012.
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O autor VAMBERTO FREITAS,é açoriano,terceirense. Professor da Universidade dos Açores,ensaísta e crítico literário dos mais conceituados e referenciados em Portugal e nas comunidades da diáspora nas Américas do Norte e Sul.
Acesse seu Blog “Nas Duas Margens”http://vambertofreitas.wordpress.com