De Manhã com Cruz
O poeta Cruz e Sousa sentou-se no banco sob a figueira – que lhe é 45 anos mais moça, só foi plantada em 1906, quando o poeta é de 1861. Mas nos dias de hoje, tanto o poeta quanto a figueira transcendem o tempo e os simbolismos.
Um facho do sol matutino tingiu-lhe as carapinhas de um raio fúlgido, dourando a face do poeta e revelando à Praça XV a volta do filho ilustre, ainda que para uma fugaz visitinha.
Sentei-me, tímido e reverente, diante do príncipe do Simbolismo e saudei o poeta com uma de suas aliterações e jogos vocálicos mais impressionantes:
– Que vozes veladas, veludadas vozes te saúdem, ó sinfônico poeta!
Lamentei que o “velho vento vagabundo” não estivesse presente para levar ao longe o nosso lamento, diante das injustiças deste Mundo.
– Nossos magistrados superiores, caro poeta, continuam prendendo Jesus e soltando Barrabás…
O simbolista não se surpreendeu, nada mudou em Pindorama, desde que o Departamento de “Recursos Humanos” da Central de Brasil quis demitir o seu escriturário negro, só porque este estava vomitando hemoptises pré-mortais.
Agora mesmo, um desavergonhado trem-da-alegria contrata 97 sortudos para “trabalhar” no Senado, sem concurso, sem nada, em troca de modestos R$ 10 mil mensais. E o contribuinte que vomite a sua impotência e a sua frustração.
Nada mais surpreende o poeta, que a tudo observa lá de sua cadeira do etéreo espaço. Ele sabe que a vida aqui embaixo continua obscura, como naquele seu poema de dor:
– Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, / Ó ser humilde entre os humildes seres, / Embriagado, tonto de prazeres, / O mundo para ti foi negro e duro…
Mas lá onde hoje mora, no Nirvana dos Justos, o poeta já não sente a mesquinhez dos que não lhe reconheciam o talento, a usura dos que não lhe perdoavam as dívidas, a inclemência dos que lhe cortavam “o ponto”, o racismo dos que o segregavam pela cor da pele. O poeta levita, hoje, sobre todas as misérias humanas – e sua fortaleza moral pode nos servir de consolo.
O bigode e o conhecido perfil iluminados pelo sol da manhã emprestaram às primeiras palavras do poeta um tom ao mesmo “natural” e solene:
– Desterro está mudada. Superpovoada. Mas vejo que a pobreza está descendo dos morros, mudando-se para as periferias da vida. Ah, meu amigo, o homem continua sendo aquele animal carnívoro, que se alimenta da carne dos mais fracos…
Testemunhando a “imunidade” que os tribunais concediam aos poderosos, o poeta recitou alguns de seus versos mais simbólicos e consentâneos com a ocasião:
– Mendigos que o sol / Apenas torna nababos felizes, / Torna mais serenas as convulsas cicatrizes /…
– É o teu poema Mendigos, não é? É ainda aplicável aos dias de hoje…
Cruz e Sousa sabe de tudo, da iniqüidade da Justiça, da voracidade dos cobradores de impostos, da impunidade geral. Sabe que o povão vai mal e que “aqueles que fazem as leis para si” vão muito bem, a bordo de suas sinecuras. Mas há alguma curiosidade pairando em suas sobrancelhas:
– Diz-me uma coisa, cronista. E os escritores, continuam pobres?
– Respondo com outra estrofe do teu poema: “Mendigos destranho aspecto / E sempiterna vigília, / Filhos nômades, sem teto, / De milenária família…”
O poeta ficou sabendo da polêmica prisão dos banqueiros e da expectante chegada de Salvatore Cacciola, aquele “gravatão” da Máfia romana.
Chocado com a leniência dos altos tribunais, Cruz e Sousa recitou, por emblemáticos, aqueles seus versos da segunda estrofe do soneto “Quando Será?”:
– “Quando será que as límpidas frescuras, / Dos claros rios de ondas estreladas / Dos céus do Bem, hão de deixar clareadas / Almas vis, almas vãs, almas escuras?”…
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