De música e magia
Agarrei-me ao banco quando o autocarro parou bruscamente, numa sinfonia de travões e pneus gastos. Já sabia que viajar no 121 (um verdadeiro «clássico», que há muitos anos percorria Montevideu de lés a lés), era quase sempre uma aventura. Assumia-se como um mosaico cultural e social: nele viajava todo o tipo de gente – vendedores, artistas, carteiristas, intelectuais, operários, reformados…
Àquela hora o ar era irrespirável. Enlatados, os passageiros tentavam equilibrar-se para não tombarem no chão. Nesses momentos, às vezes, ainda entrava mais alguém, desencadeando insultos, raivas adormecidas. Foi nesse instante que ele apareceu. Era jovem, moreno, alto, magro. Embora pressentisse que ninguém o escutaria, começou por contar a sua história simples: abandonara há anos atrás a vila onde nascera, alcandorada numa ilha plantada no oceano Atlântico. Terra deslumbrante, reino onde o verde da vegetação e o azul do mar se desenhavam numa aguarela uníssona de luz, cor e harmonia.
Certa noite, num sonho, uma voz sussurrara-lhe que deveria rumar às Américas, porque em Montevideu encontraria um grande amor e o seu talento musical desabrocharia como as hortênsias no cálido mês de Agosto. Por isso, ali estava: disponível para a vida e para a arte. Acariciou a guitarra e soltou a voz pujante. O silêncio desceu sobre os passageiros dominados pela expectativa. Foi então que a magia nasceu e se espalhou: o motorista começou a bater no volante, revelando o talento e a vocação oculta de percussionista, o revisor acompanhou-o com a sua voz…
O autocarro seguia o seu itinerário: percorria as ruas estreitas da Cidade Velha, mas ninguém saía nas paragens que se iam sucedendo. Misteriosamente hipnotizados, todos esquecemos o cansaço, o desconforto, as desilusões e a pressa. O dia de trabalho havia terminado e o tempo ficara suspenso, cristalizado na melodia e na voz que enfeitiçavam. Um momento além-tempo e além-vida, irrepetível, que em nós habitou, tecido na matéria insular dos sonhos feitos de música e magia.
Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai), professora do ensino secundário e investigadora de pós-doutoramento da FCT na Universidade de Aveiro.Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos, artigos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.
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