Deletem, escreveu ela
(teoria da deletação)
Urbano Bettencourt
Do outro lado do mundo
em voz (muda) de comando,
manda-me a Lélia que apague
o texto que, em segundos,
aqui foi desembarcado
sem de lá ser apartado
( Oh! suprema maravilha
do mundo novo admirável:
que um toque na tecla, em jeito
mais leve do que a cedilha,
lance letra, frase e ilha
no reino do inominável!).
Mas «apague» é que não chega
nem outros lusos enfeites,
pois esse termo não pega
no dicionário do Gates:
antes «delete» ou «deletem»,
já que é plural o destino
do texto que nos remete.
Atento e venerador,
toco a tecla do delete
julgando ouvir o rumor
das águas do rio Letes.
E eu que tanto deleto
– à esquerda e à direita –
amores, crenças, afectos,
não sei que nome se ajeita
ao meu gesto em cada instante:
deletor ou deletante?
Se o primeiro me não calha,
por afim de intriga baixa,
o segundo, de inconstante,
já se acerca, já se encaixa
no meu íntimo idiolecto.
Mas, quando à filologia
não se rende o menor preito,
nem a muita poesia
andam os dias atreitos,
dêmos o verso e o reverso,
revertamos a filia,
deletemo-nos uns aos outros
e ao Camões, de uma assentada,
transformando o deletor
na matéria deletada.