Descobri que sou europeia
por Luiz Fagundes Duarte
Natália: açoriana, portuguesa, europeia
Natália Correia descreveu-se algures como «ave que só sabe voar a toda a amplitude do espaço que o seu amor criou»: ela foi, realmente, uma criadora de espaços onde nós, hoje, melhor podemos respirar, e ela amou tais espaços. Amou a ilha de São Miguel, onde nasceu; amou as ilhas dos Açores, por onde revoa a pomba do Espírito Santo; amou Portugal, onde se revelou como escritora e como mulher fatal; e amou a Europa, que elegeu como o único espaço cultural em que uma mulher como ela poderia ter mergulhadas as suas raízes.
Difícil será sabermos nós quando Natália se descobriu açoriana, já que foi em Lisboa que desde muito jovem se criou; e ser portuguesa terá sido para ela, mais do que uma descoberta, a confirmação natural de uma fatalidade.
Porém, Natália só descobriu que era europeia aos vinte e oito anos de idade. Estávamos então no início da década de cinquenta, e ela passeava-se pelos Estados Unidos da América, onde se ia confrontando com «uma visão de contrastes e de agressivos antagonismos» que de tal modo lhe feriram as raízes culturais que, repentinamente, obteve a revelação de que, afinal e vendo-se de longe, ela era mesmo europeia: nas suas próprias palavras, «os laços temperamentais que a prendiam à família europeia, deixaram de ser líricas aspirações para se fundirem no aço de um deliberado amor». Desta revelação viria a nascer um livro hoje quase desconhecido: Descobri que era Europeia (1951).
Mas era uma europeia que começara por ver o mundo com olhos açorianos, tocados pelo deslumbramento com que começamos por olhar as ricas terras de além-Atlântico onde, nas suas palavras, se tornam patrões aqueles que de antes, aqui na Europa, eram servos. Quando Natália foi ver como eram os americanos na terra deles – a visão mais funda e mais emocional que à partida ela levava dos americanos era precisamente aquela que formara enquanto criança, em São Miguel: a visão dos nossos emigrantes da América, que apesar dos seus novos costumes e nível de vida nunca haviam esquecido a sua condição de portugueses dos Açores.
Não sabemos quando, verdadeiramente, Natália Correia descobriu que era europeia, e portuguesa por ser açoriana, ao menos com aquela paixão com que o afirmava nos últimos anos de vida. Das suas raízes açorianas derivou teorias com que procurou entender o culto do Espírito Santo e aquilo que ele representa para os açorianos que o receberam dos primeiros povoadores das nossas ilhas, e dessas mesmas raízes concebeu e divulgou o conceito de mátria, que poderemos entender como aquele universo de valores únicos que nos formam e aconchegam o espírito, à semelhança do regaço materno que em crianças nos embalou o corpo.
Terá sido talvez assim que, ao mesmo tempo em que descobriu que era europeia, Natália Correia descobriu que, afinal, era açoriana. Mesmo que tivesse sido necessário sair dos Açores.
Natália Correia
Descobri que sou europeia (2ª edição)
Lisboa: Editorial Notícia, 2002
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Nota: Este artigo foi publicado na nona edição da newsletter Evocando Natália Correia uma vez por mês, excelente projeto da Biblioteca Pública & Arquivo Regional de Angra do Heroísmo. Esta edição encerrou as atividades comemorativas da vida e obra da grande escritora, realizadas dentro da Programação oficial das Comemorações Regionais do Aniversário de Nascimento (90 anos) e Morte (20 anos) de Natália Correia. Levar ao conhecimento dos nossos leitores o relevante trabalho da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo é a nossa maneira de contribuir com a difusão da produção literária açoriana e de suas vozes mais expressivas.
Sobre o Autor: Luiz Fagundes Duarte, natural da Serreta, ilha Terceira.
Doutor em Linguística Portuguesa, pela Universidade Nova de Lisboa. É o atual Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura do XI Governo dos Açores.
É autor de mais de uma centena de títulos, incluindo ensaios, edições críticas e artigos científicos publicados em revistas de especialidade, na sua maior parte sobre questões de teoria e prática da filologia e assuntos relacionados com a edição crítica das obras de grandes escritores portugueses, assim como de diversas conferências em reuniões científicas; tem ministrado cursos de especialidade em diversas universidades portuguesas e estrangeiras.