AS RAPARIGAS LÁ DE CASA
Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar
(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade
eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa
Habitação das Chuvas (1997)
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A Palavra O Açoite
Todo o santo nevoeiro esta manhã de glória
pátria filha
um rugir absoluto
de botas um secreto
martelar de silêncio
filho
medo
Todo o santo silêncio este espanto este espesso
sangue suor e água e mar e mágoa
e o amor e o amor e o amor em reserva
o trigo inteiro e digo amor o dia
inteiro por ceifar
E toda a santa esperança este dia esta noite
este vago vagar de sulcos rodas rosas
rasas
a relva a alva
o alvo
corpo inteiro da esperança
Todo o santo nevoeiro esta pressa este instante
este loiro este negro este infante fantasma
e distante e distante
uma légua de mágoa
E toda a santa mágoa este dia esta noite
o discurso o nevoeiro a palavra o açoite
a glória pátria
filho
um rugir absoluto um rugir obsoleto
um secreto
martelar de silêncio
E toda a santa guerra esta manhã de mágoa
de silêncio de névoa este loiro este espesso
instante de ternura filho camuflada
de rodas sulcos rasas
rosas de fogo e afago
Toda a santa manhã esta espera este amargo
absoluto obsoleto medo filho por vir
o loiro infante o instante
todo alcácer-quibir
In: A Palavra o Açoite. Coimbra, Centelha. (1984)
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Dados Biográficos de Emanuel Félix
Poeta português, Emanuel Félix Borges da Silva nasceu a 24 de outubro de 1936, em Angra do Heroísmo, nos Açores, tendo falecido a 14 de fevereiro de 2004, na mesma cidade.
Em 1952, com apenas 15 anos, lançou a sua estreia em livro, O Vendedor de Bichos, tendo sido o início de uma profícua produção literária, que só terminou em 2003 com a coletânea 121 Poemas Escolhidos. Ao longo da sua carreira dedicou-se essencialmente à poesia, tendo sido considerado o responsável pela introdução do concretismo poético em Portugal. No entanto, acabou por optar pelo surrealismo. Escreveu também ficção, livros sobre arte e centenas de artigos, comunicações e conferências, que foram publicados em diversas revistas.
Em 1958, juntamente com Rogério Silva, fundou e passou a dirigir a revista Gávea, onde fez crítica literária e de artes plásticas, ao mesmo tempo que estudava ainda nos Açores. No entanto, depois saiu de Portugal e prosseguiu os estudos no Instituto Francês de Restauro de Obras de Arte em Paris, na Escola Superior de Belas Artes Anderlecht e na Universidade Católica da Lovaina, na Bélgica. Nesta última universidade, especializou-se no Laboratório de Estudo de Obras de Artes por Métodos Científicos do Instituto Superior de Arqueologia e História da Arte. Emanuel Félix completou a sua formação com visitas de estudo e estágios em institutos superiores e serviços científicos de museus de Paris, Bruxelas, Liège (Bélgica), Amesterdão (Holanda), Londres (Inglaterra), Roma e Florença (Itália), entre outros.
Completada a formação criou o Centro de Estudo, Conservação e Restauro de Obras de Arte dos Açores, onde deu cursos de formação para técnicos de restauro de pintura de cavalete. Foi também professor do ensino primário, secundário e universitário, nomeadamente na Escola Superior de Tecnologia de Tomar, em Portugal Continental.
Emanuel Félix integrou ainda o grupo de peritos de um projeto do Conselho da Europa destinado a estudar as dinâmicas culturais no desenvolvimento de diversas regiões europeias. Participou ainda em conferências em associações e universidades norte-americanas.
Quando morreu, em fevereiro de 2004, vítima de uma crise de diabetes, deixou por concluir alguns ensaios sobre a arte do restauro e a história da Arte.
Fonte:Emanuel Félix. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-02-14].
Disponível na www:
Produção Literária de Emanuel Félix:
É enquanto poeta que Emanuel Félix se afirma como uma das vozes literárias açorianas mais destacadas da segunda metade do século XX. Desde jovem e juntamente com Rogério Silva e Almeida Firmino esteve ligado à Gávea (Revista Açoriana de Arte), onde publicou uma «Breve Antologia de Poesia Açoriana». Em 1958 publica o seu primeiro livro de poesia, Sete Poemas, geralmente identificado como precursor do concretismo, precedendo os poetas e a poesia que nos anos 60 reinventaram a plasticidade do discurso poético, entendido como parente próximo da figuração visual. A partir daí, confirma-se a estreita relação que a sua poesia estabelece com as artes plásticas e com a música: em O Vendedor de Bichos (de 1965) a poesia de Emanuel Félix dialoga com a pintura de Miró e de Picasso, com a tapeçaria de Lurçat e com a escultura de Henry Moore; em As Quatro Estações de António Vivaldi (1965) ecoa a música de Vivaldi, reencontrado na forma de sonetos de nítida sonoridade neo-barroca.
Depois disso, Emanuel Félix prosseguiu uma escrita poética tão discreta como rigorosa. Em cada palavra dos seus poemas parece prolongar-se a experiência de quem fixa a cor certa ou o contorno exacto que numa tela antiga se reencontram. Tudo isto sem postergar a dignidade de um trabalho verbal capaz de assimilar o poeta ao operário: «Na madrugada o operário/De madrugada o poeta/Recolhem as palavras mais precisas/Para o tempo que vem que se avizinha/(…) Enquanto um sol de fogo se levanta.» (A Palavra o Açoite, 1977). Em 1984, o volume A Viagem Possível reuniu a produção poética anterior ou aquilo que, no critério do poeta, dela sobreviveu ou a ela se acrescentou. Dos anos 90 são também O Instante Suspenso (de 1992) e Habitação das Chuvas (de 1997). Neste último projecta-se um cenário com cor local e marcas distintivas próprias, cenário entretanto refigurado pelo vigor lírico de um discurso poético que transcende o localismo (o que parece ser uma preocupação constante em Emanuel Félix) e busca sentidos verdadeiramente superiores. Carlos Reis
Obras principais: (1958), Sete Poemas. Angra do Heroísmo, Diário Insular. (1965), O Vendedor de Bichos (2.a ed., Angra do Heroísmo, ed. do autor, 1971). (1977), A Palavra o Açoite. Coimbra, Centelha.
(1984), A Viagem Possível (Poesia – 1965/1981). Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. (1985), Seis Nomes de Mulher. Angra do Heroísmo, Jornal A União. (1992), O Instante Suspenso. S.l., Ínsula. (1997), Habitação das Chuvas. Angra do Heroísmo, SerSilito – Empresa Gráfica. (2003), 121 Poemas Escolhidos (1954-1997). Lisboa, Edições Salamandra.
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Fonte: Enciclopédia Açoriana, Centro de Conhecimento dos Açores
http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=6549