O escritor José Dias de Melo, falecido recentemente, foi o porta-voz das grandes façanhas dos picoenses que dedicaram a sua vida à caça da baleia. E é por essa faceta, e bem, que é conhecido. Confirmam-no as narrativas do chamado ‘Ciclo da Baleia’, três – Mar Rubro (1956), Pedras Negras (1964), e Mar Pela Proa (1976) a que [no final da vida juntou uma quarta – A Montanha Cobria-se de Negro (2008), por sinal o último livro que publicou. Mas não seria justo reduzir à baleação o largo conjunto de temáticas duma obra com mais de trinta livros. É que o professor, eminente porta-voz da cultura que soube ler na vida e nos costumes dos seus conterrâneos, escreveu sobre um naipe alargado de temas: alegrias e tristezas do dia-a-dia; anseios de melhoria de vida pela da emigração; matança do porco; cultura da vinha e adegas; desfolhadas; balhos e folias; religião popular, tradições relativas às várias quadras festivas, entre elas a do Entrudo, assunto relevante em Vida Vivida em Terra de Baleeiros (1983) e em Pena Dela Saudades e Mim (1994) e também em muitos dos testemunhos que o autor recolheu e publicou em Na Memória das Gentes, Livro II, volume 2 (1991).
Esta quadra, prenúncio da fertilidade e da abundância que vai chegar com a Primavera, é-nos apresentada pelo autor como tempo de filhós e de encontros amorosos; de ‘danças’ e de ‘bandos’; de costumes aberrantes e violentos, à maneira de certas ritos de iniciação como aquele em que «velhos mascarados» ‘limpam’ com um «trapo encardido» a cara dos rapazes que não conseguem fugir – «chegavam a carregá-los às costas, a esbracejar, a espernear» – e os obrigam a pagar no botequim «vinhaça e aguardente» e a mastigar «linguiça rançosa».
Menos agressivo, porque só de palavras, era o ‘bando’: «Monólogo jocoso, em verso, predominantemente quadras, que tem por tema a morte de um animal […] geralmente um burro ou uma burra, declamado de cima de um muro ou de um alto qualquer por um mascarado, com grandes gestos teatrais, acompanhado em coro, pelos outros mascarados com muitos urros e com estribilhos vários de que sobressai o "é verdade! é verdade!". Os dizeres do bando trazem uma pequena introdução («Lá no céu ó corpos humanos, / Que brilhais no firmamento, / Dai-me luz para que eu possa / Conseguir o meu intento.»), um desenvolvimento com a história do animal e as circunstâncias da sua morte («Ali na Canada do Morro / Aquele caso se deu / Quero dezer òs senhores, / Foi ũa burra que morreu») e a sua distribuição, com piadas escarninhas e em linguagem por vezes escabrosa, pelos moradores da freguesia («E todo o mijo que mijou / E a merda que foi cagando / Fica pra este povo todo / Que aqui me está escutando») e uma breve conclusão («E aqui acabo com tudo / Que veio este ano comigo / E por esse mundo inteiro / havera de ser poibido.»).
Num dos textos relativos à ‘dança’, escreve Dias de Melo: «rapazes enfarpelados de soldadinhos do rei, emparelhados com suas damas, rapazes disfarçados de raparigas, donzelas lindas, vestidas a rigor […] dançavam ao mando da voz tonitroante e da espada empertigada do comandante com dragonas de general nos ombros, cordões de oiro de lei, coisas sérias são coisas sérias, no peito alvo da camisa de seda fina e no chapéu de dois bicos, seu chapéu de general, armado em veludo vermelho, de um vermelhinho vivo e macio, na cabeça luzidia de brilhantina de pataco, dançavam pelos caminhos, dançavam pelo Terreiro, massames de gente a ver, aquilo é que era dançar bem aquela dança tão pinchadinha, e tão bem que tocavam os instrumentos, a viola e a rabeca».
Um estudo comparativo entre estas ‘danças’ e ‘bandos’ picoenses, (e jorgenses – conheci-os pelo Espírito Santo, e o escritor também o refere) e as ‘danças’ carnavalescas da ilha Terceira estou em crer que permitirá afirmar que o ‘bando’ corresponde àquilo que nestas é o ‘enredo’.
Costume mais generalizado é a feitura e consumo das filhós. Em tom de confidência, Dias de Melo diz-nos do prazer que era, quando miúdo, provar a massa antes de frita, às escondidas da mãe!
O tema do Entrudo surge, ainda, em Reviver: Na Festa da Vida a Festa da Morte (2000) e em Poeira do Caminho (2004). Quanto ao termo "carnaval", Dias de Melo evita-o. Usa-o com algum realce a encabeçar um capítulo de Cidade Cinzenta (1973) mas, aí, como metáfora do comportamento injusto e prepotente de certos detentores do poder.
Olegário Paz
Olegário de Sousa Paz nasceu na Beira, Ilha de São Jorge, Açores, em 1941. Estudou no Seminário e trabalhou como padre e professor em Ponta Delgada e em Angra do Heroísmo. Estabeleceu-se no Continente em 1975, licenciou-se (História e Estudos Portugueses) e fez mestrado (Literatura Oral e Tradicional). Aposentado do Ensino Secundário, é co-autor de manuais escolares e outras obras didácticas. Tem publicado trabalhos de diversa natureza, mormente de carácter literário, e ultimamente empenha-se na divulgação da obra do escritor açoriano Dias de Melo. Vive na Amadora, Portugal.