Memorandum
João-Luís de Medeiros
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DIAS DE MELO
(faúlhas do testemunho humano do Escritor)
1 – aprender a caminhar no ‘chão-nosso’ de cada dia (*)
… comecei a ter conversas esporádicas com o professor Dias de Melo, quando já caminhava na recta final da minha adolescência, como trabalhador-estudante, pronto a encetar a experiência de aprendiz da vida. Naquele tempo, divertia-me com os comentários pertinentesurdidos ao servilismo social tão em voga na sociedade micaelense, sobretudo quando proferidos por gente verbal, oriunda das então chamadas ‘ilhas de baixo’. Repito: consolava ouvir, talvez por ainda não possuir a ossatura psico-cultural bastante para os imitar ao ar livre…
Não foi preciso muito tempo para reconhecer que o cosmopolitismo hortense, a brejeirice terceirense, a valentia picoense… eram por mim sentidos como provocacões bem-vindas que desafiavam o tradicional ‘quietismo’ da ruralidade insular micaelense; dir-se-ia que aqueles falares traziam notícias aliciantes duma convivalidade social supostamente menos vigiada do que aquelaimposta pelos regedores feudais da grei micaelense.
O escritor Dias de Melo surgiu na pacatez da minha adolescência como uma espécie de ‘tio adoptivo’(dado queo nosso próprio tio Carlos fora fatalmente ‘castigado’ pela repressão fascista, cerca de quatro anos antes do nascimento do seu primeiro sobrinho). Ora aconteceu que Dias de Melo (na época professor-convidado do Ciclo Preparatório do Ensino Técnico) cedo descobriu a minha destreza de dactilógrafo, como jovem escriturário da secretaria da Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada (1957-1962).
Depois de previamente autorizado pelo nosso Director (o saudoso dr. Aníbal Cymbron Bettencourt Barbosa) comecei a ser incumbido de ‘passar à máquina’ notas didácticas e por vezes ‘propostas’ de exame da autoria de alguns agentes de ensino; entrementes, nunca disfarcei a alegria em dactilografar, nas horas vagas, muitas páginas manuscritas por Dias de Melo, com a vantagem pessoal de observar os múltiplos retoques registados nas peregrinas folhas que me eram confiadas, sem no entanto conhecer de que novela ou conto se tratava…
Recordo que após o final do mandato presidencial do general Craveiro Lopes (cuja recandidatura, em 1958, foi afastada pelo zelo fascista da União Nacional), as conversas com o ‘tio-professor’ começaram a mudar (gradualmente) de partitura temática. Nessa altura, já tinha adquirido coragem para lhe mostrar alguns dos versos inspirados na minha ‘iniciação’ anteriana.
Alguns anos mais tarde, por alturas da retomada de Goa pela União Indiana, o professor Dias de Melo entendeu apostar na fraternidade donosso relacionamento: as nossas conversas junto à oficina de serralharia do saudoso mestre Leonel começaram a ser prudentemente codificadas; aminha timidez ideológica estava bem protegida com passaporte da inocência, junto à fronteira da prudência…
Mais tarde, aquando do forçado cruzeiro colonial (1963-1966), foi-me dado reconhecer a sua leal camaradagem; nos raros mas genuinos ‘bilhetes’ que dele recebia, em Mocambique, a sugestão para diversificar as minhas leituras procurava não magoar o meu acrisolado romantismo anteriano: recomendava Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, ou alguma versão brasileira de “The Grapes of Wrath”, de John Steinbeck (prémio Nobel 1962)…
2 – o eco da justiça está para além do grito
Imagino que alguém terá porventura notado que ainda não fiz referências à obra do escritor Dias de Melo. Há precauções que explicam tal demora: a circunstância de integrar o vasto número de leitores da sua afamada obra não me outorga a credibilidade para me arvorar em crítico literário; de resto, quem lhe conhece a obra, adivinha-lhe o carácter. Sinto-me todavia preparado para conversar do ‘tecido humano’ do valoroso ilhéu-cavalheiro chamado Dias de Melo. Ainda na alvorada da nossa convivência percebi que o famoso picoense não admitia ladainhas justificativas para as falhas de consistência político-cultural. Desde tenra idade, tive a boa sorte de decorar o segredo do cofre dos nossos anseios ideológicos. De resto, a camaradagem política tem exigências que a confidência serena cultiva e guarda ab intestato.
Mas há sempre episódios que são do domínio público. Eis um exemplo: alguns dias após o nosso florido ‘25 de Abril’, acompanhei o escritor Dias de Melo (e cerca de duas dezenas de democratas) num ‘passeio’ emocional ao longo da muralha da doca, para lançar ao mar a placa de bronze ‘molhe salazar’ que durante décadas existira despercebida no topo do paredão de acesso à doca. No final do aludido passeio, Dias de Melo murmurou um comentário eivado de avisada ironia: ‘… seria bom evitar que aquela placa volte a ser um dia endeusada pelos bisnetos dos fascistas…”
Um outro episódio que não gostaria olvidar aconteceu em finais de Maio de 1974. Tínhamos combinado um encontro nas imediações da Escola Secundária Roberto Ivens, para não falhar presença à primeira reunião de cidadãos-democratas simpatizantes do moderno Partido Socialista Português, fundado em 19 de Abril de 1973, na cidade Bad Munstereifel, na antiga Alemanha Ocidental.
Antes de avançarmos para a sala onde iria ‘nascer’ o grupo fundador da primeira secção micaelense do Partido Socialista, Dias deMelo teve para comigo um gesto de colegialidade anti-fascista. Falou-me como se eu fosse um júnior embarcadiço em véspera do primeiro encontro com a faina da caça às baleias: “ … Vê lá se atinas! Não abras a boca antes de saberes quem são esses gajos…”
…/… anos mais tarde, já como imigrante, tive a alegria singular da sua visita em nossa casa, em Fall River. Notei que oapreciado escritor permanecia sempre (sempre!) mais preocupado com a fidelidade aos princípios do que cativado pelos mordomos patuscos da perfeição. Vejamos…
Numa das suas cartas (datada de 31 de Janeiro de 1987) dava notícias do seu trabalho intitulado “Uma Estrela nas Mãos do Homem”, tecendo algumas considerações magoadas àcerca do ‘oportunismo calculista’ dos manipuladores do talento alheio. Mais adiante, em gesto tocante de fraternidade, escrevia o seguinte: “…/… tenho lido as tuas crónicas…/… continuas a ser quem sempre foste. Fiel a ti mesmo. Não é fácil…”.
Noutra cartaescrita em Dezembro de 1998, depois de recordar as sinuosidadees tácticas impostas (alguns anos antes) pela política de televisão regional, o escritor enaltecia a sinceridade artística de Zeca Medeiros, entusiasta duma versão televisionada de “Pedra Negras”. Na mesma carta, depois de felicitar a minha anunciada opção pelo Oeste Americano, entendeu confessar o seu apego pela Califórnia que considerava “o recanto do mundo em que mais gostei de estar e gostaria de viver”.
Ainda numa mais recente carta (esta datada de 25 de Maio de 2005) o saudoso escritor oferece-me a notícia de que, embora ainda mal refeito de recentes problemas de saúde, começara já a escrever a última etapa de “Poeira do Caminho”, com temas alusivos ao pós-25 de Abril. Depois adianta alguns pormenores do seu plano, designadamente: “… para o Melo Antunes tenho que guardar um lugar cimeiro a nível nacional e à parte de qualquer Partido. E a nível regional (dentro do PS) outro para… ti. Claro: isto não é uma obra de memórias politicas…”.
… vou interromper o prazer de transcrever outros “episódios epistolográficos” da autoria do saudoso amigo Dias de Melo. Resta lembrar que, em meados de Julho de 2008, quando o “mau-olhado” da morte j
á espreitava o timão fragilizado da sua existência, tive a ventura de passar algumas tardes junto ao seu leito de enfermo, a escutar estórias antigas e recentes, no tom já arrastado da sua voz cada vez mais sumida no “mau tempo no canal”.
…/… nos momentos finais daquele que seria o derradeiro contacto com uma vida inspirada no alfabeto da dignidade humana (o escritor veio a falecer dois meses mais tarde), combinámos tingir o crepe nostálgico do momento da despedida com uma simples pincelada verbal: ‘ – Até logo!…’
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(*) o prof. José Dias de Melo faleceu em 24 de Setembro de 2008; porém, o escritor – esse continua bem vivo entre nós…
(texto redigido à revelia do recente acordo ortográfico)
Imagem de http://fiatluxcarpediem.blogspot.ca/2008/09/dias-de-melo-8041925-24092008.html