A sobrevivência Portuguesa na Califórnia
Há dias em que me apetece escrever sobre a presença portuguesa na Califórnia. Nem sempre tem sido uma tarefa fácil. Refletir-se as nossas comunidades neste estado plantado à beira do Pacífico é correr o risco de chatear-se muita gente: os que trabalham para a comunidade e acham que tudo está bem e os que nada fazem e tudo criticam. O que é certo é que quando olhamos a comunidade de caras, despidos de todos os preconceitos e as vicissitudes que por vezes nos orientam, raramente vemos a comunidade que gostaríamos de ver, ou temos o distanciamento necessário para a encararmos, com a realidade que, quotidianamente nos entra nas nossas casas, na privada e na coletiva, a metamorfose e a inevitável (e porque não desejável) americanização que faz parte do nosso mundo, que jamais pode ser um mundo entre dois mundos, mas um mundo perfeitamente integrado no mainstream, com algumas pinceladas muito nossas, da nossa etnicidade, da nossa língua e da nossa cultura, essa que também não vive, nem deve viver, numa redoma e daí que se reinventa e transforma. É que somente com uma transformação em movimento constante, com um íman aglutinador de outras culturas e vivências é que a nossa presença portuguesa em terras californianas poderá sobreviver.
Filho desta comunidade. Para o bem e para o mal, sou o produto da mesma. Nesta comunidade vivo desde a idade dos 10 anos e nela participo ativamente desde os 17 anos, quando, ingenuamente, comecei a minha presença no mundo da comunicação social em língua portuguesa com o programa de rádio A Voz do Emigrante Português. O mundo português em terras da Califórnia tem sido uma constante na minha vida. Sinto-me bafejado pela sorte de com a comunidade ter trabalhado, chorado, rido e sonhado. Com a comunidade aprendi a ser português. Com a comunidade vivi alguns momentos de euforia e com a comunidade vivi algumas circunstâncias de profunda tristeza. Com a comunidade embebi-me de grata emoção quando há pouco tempo, depois de mais de 40 anos nestas andanças, com 22 desses anos no ensino, por motivos de um rebuçado que me deu a California Language Teachers Association, recebi de um antigo aluno uma nota que entre outras frases bonitas continha esta: por causa do senhor hoje sei quem sou. Com a comunidade enfureci-me, quando no longínquo ano de 1982, fui cofundador da primeira estação de rádio em circuito fechado na Califórnia, a trabalhar totalmente em português, 14 horas por dia, e foi-me dito na cara: queres ganhar a tua vida, vai ordenhar vacas. O que já havia feito, sem desprezo nem vergonha, durante dois anos.
É esta comunidade, hoje uma simbiose de várias gerações que, que temos aqui na Califórnia. É esta comunidade que, diria sem qualquer exagero, hoje completamente integrada no mundo empresarial, no mundo económico e até um tanto ao quanto no mundo politico californiano, ainda não está totalmente integrada no mundo social e cultural. E ainda está um bocado distanciada da conjunção que necessitamos construir com as outras etnicidades que compõem o multiculturalismo californiano. Sabemos fazer negócio com toda a gente, de todas as raças e todas as cores, mas ainda não compreendemos que é essencial que a nossa presença cultural tenha a mesma expansão e a mesma convivência que o mundo empresarial tem. Ainda não compreendemos que o nosso calendário festivo e social, repleto de riquezas gastronómicas, colorido, alegre e generoso só terá futuro se conseguirmos levá-lo junto dos nossos vizinhos e amigos de outras etnicidades. É que na Califórnia, um estado da união americana desde 9 de setembro de 1850, praticamente toda a gente veio de um outro lugar.
Os nossos negócios, pequenos e grandes; as nossas herdades agrícolas, pacatas ou pujantes; os nossos professores e académicos, os mais arrojados e os menos ousados; os nossos políticos, os locais e os estaduais e nacionais, todos, mas mesmo todos, têm sucesso porque estão presentes no mundo californiano. Não há nenhum empresário luso-americano na agropecuária que só venda o leite ou a carne das suas manadas somente à comunidade portuguesa. Não há nenhum construtor civil que só constrói casas de luso-descendentes. Não há nenhum comerciante que só venda os seus produtos, mesmo os nossos enchidos, só à comunidade de origem portuguesa. Não há nenhum dentista, agente de seguros, advogado, bancário ou cozinheiro de sucesso que só sirva, única e exclusivamente, clientes da nossa comunidade portuguesa. Nem tão pouco um professor de língua portuguesa que só queira ter alunos de descendência portuguesa terá futuro no sector do ensino. Daí que, e sem querer ser simplista, não há razão para os nossos salões, as nossas organizações, os nossos eventos culturais, as nossas festas e até mesmo a nossa comunicação social, todos, mas mesmo todos, estarem única e exclusivamente à mercê da nossa comunidade. Ao longo dos anos uma das frases que mais tenho ouvido de comerciantes de sucesso é esta: “se fosse para fazer negócio só com os portugueses, já tinha morrido de fome.” Então não será tempo de adotarmos essa mesma teoria e prática ao nosso movimento associativo, às nossas festividades e eventos culturais, à nossa presença no mundo californiano?
Chegou o momento para a cultura portuguesa na Califórnia ter o mesmo direito que têm os negócios. Estar em pé de igualdade com as outras culturas. Chegou o momento de profissionalizarmos os nossos eventos culturais e de os transformamos em verdadeiros estandartes da nossa presença portuguesa em terras do Eldorado. Chegou o momento de aprendermos com outros grupos étnicos cuja sobrevivência só aconteceu porque integraram o mundo californiano sem receios e apeados. Aqui no centro da Califórnia, na cidade de Fresno, temos um exemplo claro e inequívoco que utilizo com alguma frequência. Segundo as melhores estimativas existem na zona de Fresno cerca de 3 mil pessoas de origem grega. Há umas boas dúzias de anos a comunidade de origem grega criou o Fresno Greek Festival. O evento começou com algumas centenas de imigrantes gregos e seus descendentes. Há menos de duas décadas alguém decidiu que a festa anual dos gregos deveria ser expandida e envolver todo o mundo. Que a gastronomia, a música, os bailados e história grega precisavam ir além do seu pequeno mundo e da sua paroquia. Que precisavam partilhar a sua cultura com o mainstream. Hoje, uma comunidade com menos de 3 mil descendentes faz um festival que no ano passado, ao longo de três dias, teve a participação de cerca de 20 mil pessoas. Durante três dias a comunicação social americana faz eco do Greek Festival. Há que aprender com esta e outras experiências de grupos étnicos muito similares ao nosso.
A nossa presença portuguesa na Califórnia tem mesmo que ser pensada e tem que ser reinventada. Acho que é imperativo que o façamos e já. Acho que tem que ser um projeto que envolva as várias gerações de imigrantes e luso-descendentes. Temos que contar com o apoio de todos: a irreverencia (quando a há) dos nossos jovens, e a experiência (mesmo quando está viciada) dos mais velhos. Há que ter-se a consciência que nem tanto ao mar nem tanto à serra, ou seja: um dos nossos males também é termos jovens que não são abertos e que pensam na comunidade tal como ela foi para os seus pais ou avós, ou pior ainda, veem a comunidade em termos extremamente paroquiais, como um clube elitista para eles e os seus amigos, ao qual mais ninguém tem direito à entrada. Por aí não chegarmos a qualquer lado. Se não formos inclusivos, se não formos capazes de englobar todas as gerações e todas as visões jamais construiremos a perenidade que todos, ao fim e ao cabo, queremos para o nosso legado português em terras californianas. Chegou o momento de adotarmos para a comunidade o que sempre adotamos para os nossos negócios e as nossas vidas profissionais.
A nossa cultura também precisa dar entrada no mundo californiano.
Diniz Borges. Nasceu na Ilha terceira,Açores. Vive na Califórnia. Uma das mais atuantes lideranças das comunidades da diáspora. Professor de grande mérito, escritor e crítico literário. Coordena o Suplemento Literário Mará Cheia do Jornal Portuguese Tribune (Modesto,Ca).