"No critério que adoptei para classificar em três tipos o açoriano dos nossos dias [o micaelense, o das ilhas de baixo e o picaroto], tive principalmente em conta os matizes da fala insulana, tão rebeldes à outiva como virgens ainda para a fonética experimental. As modalidades de índole, costumes, maneiras acompanham esses matizes com uma precisão magnífica; e só tenho pena de que a minha intuição não venha socorrida das provas, dos vivos exemplares de que a minha memória anda cheia".
Vitorino Nemésio, "O Açoriano e os
Açores" Sob os Signos de Agora,
Obras Completas, Vol. XIII (Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1977): 97
Dispersos linguísticos: sons vocálicos e o Português dos Açores – Irene M. F. Blayer
Relativamente às línguas românicas, a labialização de vogais orais acentuadas (por exemplo u pronunciada ü, pronúncia que se aproxima de iu), a monotongação de ditongos orais (ei/eu pronunciados e) e o desprendimento de vogais anti-hiáticas (o milho pronunciado u muilho) constituem algumas das notáveis particularidades fonéticas dos Açores. São peculiaridades, que embora caracterizantes das ilhas de São Miguel e Terceira respectivamente, abrangem áreas dialectais dos grupos oriental, ocidental e central (Blayer 1992).
Do ponto de vista diacrónico, uma das evoluções mais importantes na história da fonologia das línguas românicas é a da deslocação das vogais no triângulo vocálico, e em particular da vogal u no território da Gália – fenómeno historicamente conhecido por pertencer à influência de um substrato celta. Com esta deslocação da vogal u houve previamente toda uma alteração do sistema vocálico. A presença da vogal labializada ü chama a atenção quando ouvimos o francês e certos falares dialectais, ou variedades dentro das línguas românicas, inclusive no Português europeu. No entanto, na diacronia que subjaz a evolução vocálica das línguas neolatinas, o Português é uma das mais conservadoras, mantendo um sistema de sete vogais – tal como existia no latim vulgar (popular).
Nos Açores, o sistema vocálico participa da mutação que se desenvolve no vocalismo das línguas românicas, sendo mais proeminente em São Miguel e aparecendo com vários graus de acentuação nas demais ilhas (Blayer 1992). Com a presença desta vogal labializada deu-se uma deslocação deste sistema criando-se assim um sistema assimétrico – ou outros sistemas – distinto do Português padrão. Interpretar este fenómeno da labialização em termos fonológicos leva-nos a assinalar a hipótese apresentada por estruturalistas para explicar a presença das vogais labializadas – não apenas ü – nas línguas românicas. Segundo eles, esta ü que encontramos em São Miguel, evolucionou de uma assimetria deixada no espaço articulatório do sistema vocálico tanto na parte anterior como na posterior da boca. Com base na economia linguística, André Martinet (1955) explica que tudo o que se refere à linguagem deve ser visto "do ponto de vista da sua função" (from the point of view of function). As línguas preferem sistemas fonológicos simétricos e a função dos "sound shifts" é a de produzir simetria num sistema assimétrico.
Curiosamente, verifica-se que a assimetria do sistema vocálico de São Miguel não é anormal. Basta compará-la com as demais línguas românicas para compreender que é um processo interno normal da evolução fonológica românica. Assim, estamos perante fenómenos de mutação vocálica que reflectem naturalidade e causas internas do câmbio linguístico, algo inerente aos fundamentos da gramática histórica de orientação estrutural quando nos fala de vazios no sistema de cadeias de reacção, ou nas motivações que usam os funcionalistas para justificar o equilíbrio e a facilidade no esforço articulatório.
Notemos, antes de mais, que devido à presença da labialização da vogal u, provocaram-se as mutações vocálicas, que no seu conjunto de variedades linguísticas insulares, registam um sistema vocálico inovador que se afasta dum português padrão por um lado, e, por outro, se identifica com variedades relacionadas com o espaço linguístico do Português europeu, além de um sistema vocálico muito próximo do Português padrão. Ao observar estas variedades insulares, não podemos ignorar um continuum interlinguístico Açores <-> Portugal que tem num extremo diferentes formas localizadas onde se encontra uma série de etapas dentro de um conjunto de falas de uso familiar – local/rural – a outro grupo reduzido, de variedades padrão de presença urbana, e/ou ramificações relacionadas com um nível de escolaridade, aceitação social, encetando, assim, o seu dinâmico desenvolvimento interno.
Repare-se, no entanto, que pelo que toca à ‘percepção’ do falar do ilhéu – e que parece infligir uma verdadeira fractura nas nossas comunidades portuguesas/açorianas da diáspora – esta associa-se a um sentido que incute ao universo linguístico açoriano uma relação de distância do Português europeu, pois percebe-se que a falta de conhecimento das realidades linguísticas do Português favorece juízos de valor que em princípio afectam uma apreciação negativa do falar que caracteriza o açoriano. Vão-se, deste modo, perpetuando mitos, fazendo ressoar aquilo que erroneamente identifica uma realidade linguística insular, lembrando cada vez mais uma divisão dentro da própria geografia linguística portuguesa.
No âmbito das matizes linguísticas insulares, recordemos as apreciações iniciadas no século XIX por Gonçalves Viana (1883:29-98; 1941:161-243) e José Leite de Vasconcelos Aniceto dos Reis (1890-92: 289-307; 1926), seguidas -entre outros estudos de etnografia insular aqui não referidos-, do ensaio de Matos (1936) e que se generalizaram com os estudos de Francis M. Rogers nos anos 40 do século XX (1940;1946: 235-253; 1948; 1948:1-32; 1949: 305-314; 1949: 1-32). Dos anos 60 e 70 datam várias teses de licenciatura, estudos sincrónicos dedicados às ilhas Terceira (Borba Dias 1965; Maia 1965), Faial (Baptista 1970), São Jorge (Mendonça 1959 ) e São Miguel (Medeiros 1964) , escritas por estudantes açorianos a completarem estudos universitários em Portugal. E mais tarde, no único estudo de conjunto das variedades vocálicas açorianas, encontra-se uma tese de doutoramento defendida em 1992 pela autora deste texto. Nesta mesma década de 90 seguiram-se outros estudos sincrónicos, duas teses de doutoramento uma de mestrado e outras de licenciatura. Uma das teses de doutoramento aplica-se à ilha do Corvo (Saramago 1992) e a outra -como vários dos demais estudos-, à ilha de São Miguel (Rolão 1999). Há, pois, informação que caracteriza a nossa dialectologia insular e lhe dá uma feição linguística românica.
Para Eugenio Coseriu (1982:11-113) "as línguas são entidades que resultam de como as pessoas vêem e explicam realidades, criações socioculturais elaboradas por grupos de falantes que se identificam frente a outros falantes"; além disso, e de constância científica, as variedades linguísticas são entidades analisadas à base de uma determinada teoria linguística, ‘são ferramentas e um fruto de análises científicas dos enunciados da fala’ e, por conseguinte, directamente relacionadas com cada uma das perspectivas de variação que o linguísta segmenta num determinado número de variedades geográficas. Sendo assim, em cada um destes casos querer-se-á ver um registo do tema em que as variações dialectais açorianas se unam a todos estes factores, e, no seu colectivo sejam relacionadas e atestadas com fenómenos peninsulares e extra-peninsulares com base nos parâmetros que regem os estudos sincrónicos e diacrónicos da linguística românica.
(excerto, modificado de estudo linguístico por Irene Maria F. Blayer)
P.S. Neste texto, não se aplicaram as normas do novo acordo ortográfico.