A 27 de Outubro de 1945, o jornal A Ilha trazia à esquerda e ao centro da primeira página dois «fundos» assinados por Pedro da Silveira e Fernando Reis, respectivamente: o do primeiro intitulava-se «Posição e ponto de partida duma geração»; o do segundo, «A Ilha lança um apelo – uma campanha em prol dos Açores». Aparentemente, e a uma leitura de relance, nada ligará os dois textos. No entanto, e por razões que adiantarei, acabei por escolher o jornal desse dia como uma referência fixa no interior do tempo vago e difuso de que fala o meu título. Convém explicar que não há aqui nada que se pareça com o rigor do muito ilustre bispo Usserius, que assegurava com todas as letras que «Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro, às duas horas da tarde»[1]; trata-se apenas de arranjar, de forma mais ou menos justificada, um pouco aleatória talvez, uma baliza que nos permita situar os acontecimentos [d]«aqueles anos de 1940 e tal»[2] e ao mesmo tempo nos ajude a entender o seu sentido e alcance.
O texto de Pedro da Silveira não era um manifesto, mas procedia a uma abordagem das condições sociais e históricas em que se situava uma geração, a sua, e das tarefas que lhe eram exigidas em termos históricos e sociais. Fernando Reis, por seu lado, ocupava-se de uma questão mais concreta: os militares continentais, os expedicionários, estavam a regressar a casa e falavam muito das belezas dos Açores, mas quase sempre em termos pouco abonatórios; importava, por isso, olhar com atenção para o que estava mal e tomar medidas e, também aqui, essa era uma tarefa dos mais novos. Para lá desta referência imediata, o que o texto de Fernando Reis permite sobretudo evocar é a presença em Ponta Delgada de outros continentais que, menos preocupados com a paisagem açoriana, participaram activamente na transformação cultural que se desenhou na década de 40 e que, directa ou indirectamente, tinham vindo parar aos Açores por razões de ordem militar.
1945 foi, na verdade, um ano de sinais.
A 14 de Julho, Pedro da Silveira inaugurou n’A Ilha uma secção intitulada «Notas sobre Literatura Contemporânea», e nesse primeiro número ocupou-se da moderna literatura cabo-verdiana e do seu poeta Jorge Barbosa. Ao longo dos seis anos seguintes, Pedro da Silveira “visitou” com regularidade os escritores cabo-verdianos e publicou-os cá, alguns deles tendo-se mesmo estreado no jornal de Ponta Delgada. Estava aí aquele que foi um dos principais campos de referência e de formação literária desta geração, em termos práticos e teóricos – basta ver, por exemplo, o primeiro livro de Pedro da Silveira, A Ilha e o Mundo (1952), ou o modo como a experiência literária cabo-verdiana assoma no interior da discussão sobre a literatura açoriana, já no início da década de 50. De resto, em mensagem pessoal de 17.09.2006, o próprio Eduíno se referia a este aspecto e ao papel desempenhado pelo cabo-verdiano João de Deus Lopes da Silva, irmão do escritor Baltasar Lopes e comandante da marinha mercante e que a bordo do seu navio reunia em tertúlia os jovens intelectuais de Ponta Delgada, sempre que por cá passava. Nessa mesma mensagem deixava o Eduíno, como memória de leitura desse tempo, uma estrofe de «Terra-Longe», seguramente o mais conhecido poema do cabo-verdiano Pedro Corsino Azevedo:
«Ai, não montes tal cavalinho,tal cavalinho vai terra-longe,terra-longe tem gente-gentio,gente-gentio come gente.»
Mas voltemos a 1945. O ano tinha começado praticamente com um texto de Egito Gonçalves (nessa altura já regressado ao território do continente) em que o livro Noite de Alma, de Lopes Araújo, era objecto de uma crítica desfavorável em virtude do seu convencionalismo literário. Era o mote para uma polémica que, no entanto, só chegaria em Maio e graças a um texto do jovem Carlos Wallenstein, que motivaria uma troca pública de cartas entre o crítico e o autor e ainda a intervenção “moderadora” de Fernando Reis. As águas literárias agitavam-se, mas é preciso ver que as coisas não começavam de modo abrupto. Três anos antes já Ruy Galvão de Carvalho escrevia e fazia palestras de “introdução à poesia modernista”, uma delas no liceu e em que se empenhara na demonstração de que a poesia modernista é uma poesia de inquietude metafísica de «consciencialização da vida interior». Ocupara-se explicitamente de Orfeu e da Presença e ilustrara as suas palavras com exemplos concretos, a tentar afeiçoar os «ouvidos burgueses dos tradicionalistas» (citação do jornal).
Vale a pena uma breve pausa para um desvio lateral, a propósito da participação dos expedicionários continentais nos acontecimentos literários de Ponta Delgada. Num texto de 1983, e recusando a ideia de que a introdução do modernismo fosse uma consequência directa da presença deles em S. Miguel, Pedro da Silveira tentara pôr os factos no seu devido lugar, ao escrever que «a maioria desses moços só nos Açores se encontrou com o Modernismo»[3]. Ora, esta afirmação é corroborada por um testemunho posterior prestado por Egito Gonçalves a José Tavares Rebelo, e que refere exactamente o papel que a presença em S. Miguel (1942-1944) teve na sua formação e mesmo no seu destino literário:
«Tive a sorte de ser “expedido” para S. Miguel onde me foi dado conviver com alguns dos escritores de Ponta Delgada. Estive ali dois anos e, transitando pela cidade, ou enchendo os olhos pelas estradas de Nordeste aos Mosteiros, frequentando o “Bureau de Turismo” que me fornecia as últimas novidades em livros, eu ia crescendo… (…) sei quanto devo, na minha formação, aos dois anos que ali passei… trouxe dos Açores um acréscimo de cultura, o interesse por coisas que antes desconhecia, e os olhos cheios de uma paisagem inesquecível»[4].
E dentre os seus mentores ou padrinhos literários referia Egito Gonçalves os nomes de Armando Côrtes-Rodrigues, Diogo Ivens, Ruy Galvão de Carvalho e João da Silva Júnior, que, não sendo um escritor, sempre esteve ao lado deles, enquanto divulgador atento das suas obras e livreiro que também era, mediante o seu Bureau de Turismo; viria depois a convivência com os jovens da geração seguinte, uns e outros convocados no seu primeiro livro, Poema para os Companheiros da Ilha (1950).
Tudo isto para dizer que a criação do Círculo Literário Antero de Quental (CLAQ) , em 1946, é um elo a mais nessa cadeia de acontecimentos, o resultado também de uma inquietação renovadora que se corporiza em torno desse grupo de jovens: “É o grupo fundador do Círculo Literário Antero de Quental que, pelos anos 40 (mais precisamente, 46), se arvorou em mentor do movimento modernista a introduzir na Ilha e se destinava, por definição, a acabar com o conservantismo que estagnava as letras açorianas” – escreve Fernando Aires[5], um dos fundadores do CLAQ, juntamente com Eduíno de Jesus, Fernando de Lima, Jacinto Soares de Albergaria e Eduardo Vasconcelos Moniz; e prossegue o autor: “em 48 junta-se-nos o Carlos Wallenstein, o Rui-Guilherme de Morais, Mário Barradas, Machado da Luz…”.
(cont.)
[1] Eça de Queirós, Adão e Eva no Paraíso.
[2] Pedro da Silveira (1986), «Aqueles anos de 1940 e tal», in Onésimo Teotónio Almeida, Da Literatura Açoriana – subsídios para um balanço, pp. 31-42.
[3] Idem, p. 33.
[4] In Boletim da Casa dos Açores do Norte, nº 32, Junho de 1992, p. 7 e 8. Citado por José M. Tavares Rebelo, em «O poeta que se formou na ‘Universidade de Ponta Delgada’».
[5] Fernando Aires, Era uma Vez o Tempo – Diário V, Lisboa, Ed. Salamandra, 1999, p. 62.