Do Corvo a Pablo Neruda
Há relutantes leitores do romance histórico. Sou um deles. Custa-me obnubilar ainda mais a barreira entre factos e ficção. Sei que a história nada em ficção, mas por dela se não se conseguir libertar, nanja porque a busque propositadamente. Na ficção, vigora o contrário. (Mickey Spillane pôs uma vez o protagonista de um dos seus romances policiais a beber cerveja e, quando um crítico lhe elogiou a consciência social por fazer os seus heróis tomarem bebidas comuns, o escritor declarou que primeiro escrevera cognacmas sobrevieram-lhe dúvidas ortográficas e não tinha um dicionário à mão). Para apanhados como eu é que servem obras do género The Secrets of the Codeajudando a separar as águas de O Código da Vinci. E não sei se foi a melhor escolha, pois ronda já pelos noventa o número dos livros que vieram a debate. Senti necessidade de obra idêntica quando terminei a leitura do Equador, de Miguel Sousa Tavares (sim, li-o com prazer). Fui assaltado pelas inevitáveis perguntas: que haverá de histórico nesta personagem? Naquela cena? Sem auxiliares disponíveis, fiquei-me pelas interrogações.
Suponhamos que me ocorria comemorar o centenário do nascimento do poeta Pablo Neruda, Nobel em 1971, com um romance. Açorianíssimo como sou, arrancava ao Corvo um personagem (o Corvo é o nosso lugar mais mítico e em ficção funciona a jeito) e encaixava-o numa história de baleação (outro lugar privilegiado do nosso imaginário). Nasceria aí por 1885 (reparem na proximidade com Fernando Pessoa). Já teria familiares espalhados pelo quatro cantos do mundo: um irmão padre em New Bedford, Massachusetts, na então já crescida «colónia portuguesa», como era conhecida; outros irmãos em S. Francisco, na Califórnia, elemento complementar obrigatório na geografia da nossa diáspora insular. Mas iria mais longe. Colocaria um tio em Santiago do Chile, embarcado num dos baleeiros que tinham de passar pela Tierra del Fuego para prosseguirem em direcção ao Pacífico. Arranjar-lhe-ia aí uma livraria, fazendo-o dono, para assim registar esse outro dado da história cultural açoriana com um naco de gente estranhamente associada com frequência à edição de livros. O meu herói sonharia com as Califórnias perdidas de abundância do epigramático poema «Ilha», de Pedro da Silveira, e aos vinte anos rumaria a New Bedford mas não lhe agradariam as possibilidades oferecidas pelo tio padre. Aí meter-se-ia num «carro-de-fogo», como então os imigrantes chamavam ao comboio que os levava da «América de Baixo» à «América de Cima» (topónimos gerados pela ilusão de se subir sempre até as Montanhas Rochosas) e tentaria fazer vida em S. Francisco. Demorar-se-ia pouco tempo lá. Como se assaltado de alguma premonição, abalaria um ano antes do brutal terramoto que, ajudado por um incêndio infernal, dizimou a cidade em 1906 reduzindo-a a um monte de cinzas.
Embrenhado que estou nesta história, deixem-me passá-la para o presente do indicativo de modo a não cansar o leitor com tanto condicional. Avancemos.
O nosso herói decide embarcar num cargueiro rumo a Valparaíso no Chile, onde é roubado. Segue para Santiago em busca do tal tio dono de livraria. Foi, no entanto, desamor à primeira vista. Por isso ele pisga-se para Concepción onde escorrega de enlevo por uma chilena com quem vem a casar. Mais tarde morre-lhe o tio celibatário. A livraria é entretanto legada ao nosso herói que, aos poucos, a transforma num lugar dinâmico aonde os escritores e intelectuais gostavam de ir à fala. Lança-se na publicação de livros de autores locais, particularmente atentos à história e cultura do país, até ali desprezadas. Publica mesmo uma grandiosa história chilena. Acarinha os escritores da terra e descobre alguns que se tornaram figuras lendárias. Gabriela Mistral, por exemplo. E Pablo Neruda, nem mais. Deste publica o primeiro livro e descobre-o para o país. A livraria transforma-se no grande ponto de encontro da intelligentsia chilena. Mais tarde, Neruda não lhe fará a devida justiça e muita gente em Santiago regista o facto como injustiça. Parece que – e na ficção de fundo histórico há que ter-se um certo rigor – Neruda não era lá muito fácil no relacionamento. Ou pelo menos assim mo revela meue-migo Lustosa da Costa, de Brasília. (Essa do e-migo já a usei na fala e os meus interlocutores pensam que o estranho da palavra se deve ao meu sotaque micaelense. Assim escrito vai com mais cara de ser notada a alusão internetional.)
Mas paremos aqui com a suposta ficção. Afinal, nada disto é inventado. Tudo não passou de breve resumo de um livro biográfico que se lê como romance e foi editado pela Direcção Regional da Cultura, dos Açores, tradução de original chileno do Professor Vazquez Garcia del Postigo. O nosso herói tem nome: Carlos G. Nascimento. A editora idem: Livraria Nascimento. Todos os outros dados são igualmente reais nesta singular história de um ilustre, até há pouco, desconhecido inclusive na sua ilhota natal, o Corvo. (O Corvino Carlos G. Nascimento. Co-Arquitecto das Letras Chilenas. Angra do Heroísmo: DRC, 2004).
Caso para se concluir que também as ilhas não se medem aos palmos.
Onésimo T.Almeida
Publicado originalmente no JL, Lisboa,2004