Ponta Delgada, 1 de Julho, 1995
Ontem, foi o jantar que me quiseram oferecer (1). Sala cheia, no ambiente distinto dos Fonte Bela. Discursos lisonjeiros a meu respeito. Palmas e sorrisos. Música. Que mais queria eu? Tudo isto produz o efeito de um vinho capitoso, uma espécie de vertigem feliz em que a gente cai na ilusão de que a vida é para sempre e este o melhor dos mundos.
Ao outro dia, o Onésimo encontrou-me e, com o humor que lhe conhecemos, escovou-me o fato dos “adjectivos” todos acumulados na noite anterior…
É verdade. As pessoas juntaram-se e encheram-me de “adjectivos”, gratos de se ouvir, decerto. Porém, por detrás do gesto amigo, senti que se despediam de mim, que me remetiam para o sótão onde se costuma guardar o baú da avó, as cadeiras de pé quebrado. Claro que não me queixo e quase quero acreditar (ou acredito mesmo) que ninguém pensou nisto de baús e de sótãos, mas uma coisa é o que pensam as pessoas e outra, muito diferente, é o que a gente sente.
O Jantar foi no salão nobre do meu antigo Liceu, o Palácio dos Fonte Bela, bem identificável pela grandeza da sua escadaria de pedra, pelos tectos com pinturas, pelos salões, a que dão acesso portas de carvalho com obra de entalhador.
Tenho aquela Casa como um bem de família, a mesma amizade, desde o longínquo ano do meu exame de admissão, um exame que não era para brincadeiras. Com dois erros de ortografia (já não me lembro de que calibre), chumbava-se sem apelo. Dois inofensivos erros que não punham em perigo Deus, Pátria e Família, expressão muito usada na altura pelos Estados Gerais da Nação. As meninas vinham fazer exame de vestido de organdi e laço na cabeça. Nós, rapazinhos, de gravata e cabelo penteado a brilhantina – enquanto lá em casa mães e tias entoavam ladainhas e acendiam um pavio de azeite ao Bendito.
Nestes últimos anos, a minha vida correu por outros lados, mas era a este lugar que eu verdadeiramente pertencia. Sempre pertenci. Com efeito, nunca deixei esta Casa: quem ama não parte, não é verdade? Nela fui aluno e depois professor – vinte e seis anos ao todo, de convivências, de trabalho, de familiaridade com toques de sineta, gente nova e gente menos nova. Paredes e tectos e livros e música ouvida nos saraus e nas festas de confraternização. Pretextos têm-me servido sempre para vir matar saudades. E as mais das vezes venho sem pretexto nenhum – apenas para rever as salas e os corredores onde deixei os meus próprios passos, a minha voz, as vozes dos que por aqui passaram, o aroma a figos passados dos livros velhos. Pode-se dizer que nunca entro na biblioteca que não espreite a primeira estante à esquerda. Ali se guardava a obra completa de Júlio Verne, uma edição encapada de vermelho, premiada pela Academia das Ciências de França, tradução de Henrique de Macedo, editada pela Bertrand. Depois dos contos de fadas da minha meninice, seguiu-se, de perto, Júlio Verne: “Três Anos de Férias”, “Da Terra à Lua”, “Os Filhos do Capitão Grant”, “A Ilha Misteriosa”, “Vinte Mil Léguas Submarinas”. Outros ainda. Dirigia-me à senhora dona Maria do Espírito Santo, zeladora da biblioteca, uma senhora completamente solteira, rechonchudinha, o passinho miúdo, voz de soprano, toda maternal. Pedia-lhe o livro, ia-me sentar ao pé da janela do fundo – o livro pesado de naufrágios, ilhas desertas, sonhos, visões proféticas, em lampejos de um grande poder narrativo, balançado entre a realidade e a fantasia, que não era mais do que o anúncio do futuro, como depois se veio a ver. Quem me dera ser capaz de comunicar o prazer que senti, com aquelas leituras, a tantos jovens que não se interessam nada por leituras e muito por Pedro Abrunhosa e Figo.
Nessa época, ao contrário de agora, a gente não tinha meios de ir passear para além da Ilha. O passeio que dávamos, quando acabávamos o curso, era até à Relva, com um pouco de sorte, um poucochinho mais longe – num embrulho, a merenda feita em casa por nossas mães, mais um pirolito para molhar a boca. Não tínhamos meios, mas tínhamos Júlio Verne, o privilégio das viagens maravilhosas por paragens que se passavam a conhecer na geografia, no clima, nos recursos do subsolo, na fauna, na flora, nas gentes estranhas. Era o substituto (mais nobre, todavia) da desmedida, omnipresente, perversa infecção de banalidades e violência, que se chama TV, com a insuperável vantagem de sermos nós, leitores, também realizadores, encenadores e co-autores das aventuras, da cara e tamanho dos heróis, da beleza e da estatura das árvores e das montanhas aonde nos levava a nossa ousadia e a nossa imaginação.
Mas já basta de jornadas trabalhosas e arriscadas, com notas biográficas de veterano a olhar para trás com uma certa candura, pois nem tudo, na nossa vida, foi tão bom como depois se diz que foi. E esta convicção ajuda a gente a resignar-se com os anos que passam.
Fernando Aires – Era uma Vez o Tempo – Diário IV
(1) Trata-se do jantar que o Conselho Executivo, por tradição, realiza para homenagear os professores aposentados. (nota dos coordenadores).
Nota: O texto ntegra o livro “Memórias do nosso Liceu, Coletânea de testemunhos