Ainda o conservo sentado na cesta do meu quarto. Está lá, dia após dia, amarelo, cansado do tempo, com os olhos pendurados por dois rijos fios pretos, espreitando por baixo de grossas pálpebras de um tecido forte, que traz de origem; herdado talvez de um resto de tecido para fazer olhos de peixe ou camisas para bonecas de sapatos de verniz. Aparece em quase todas as fotografias que tenho no álbum de infância, em vários sítios das casas onde morei; acompanhando-me no tapete, deitado ao meu lado no berço, em cima das prateleiras dos quartos, onde dormi, até chegar a este, que é o meu há mais de vinte anos. Durante o tempo em que me ausentei ficou à minha espera e depois, quando voltei, continuou a ocupar lugar de destaque. Já me serviu de almofada nas noites mais terríveis de tosse fortíssima e febres de gripe. Não tem nome nem sei, sequer, a sua data de nascimento; sei que é mais velho do que eu; que já era para mim, no dia em que nasci. Não conheço a mãe nem o pai, pois que, de uma forma ou de outra, tenho sido isso tudo para ele, mesmo sem lhe ligar nenhuma, agora, e ele tem sido a parte da saudade que trago das coisas de quando era pequenina. Do soprar sibilante da voz do meu avô, das suas mãos macias traçando a rota das palavras, gesticulando, ensinando-nos a coragem missionária (que é aquela que deve emprenhar os ouvidos até deixar neles o rasto do sal de tempero indissociável da rectidão e do trajecto leal e justo por causas das pessoas). Ao escrever agora esta crónica que a Lélia Pereira Nunes me pediu para este blog, que tanto admiro, dei por mim a pensar no meu urso amarelo; de como seria mais fácil escrever estas linhas se ainda me fosse possível ouvir o seu falar pausado, à moda de São Miguel, por vezes, parecendo chorado e irritado, ao mesmo tempo. Já não me é possível. Olho para ele todos os dias, rapidamente. Admiro-o. Tenho-o ali pousado na cesta do quarto porque, de uma maneira ou de outra, preciso de sentir que existi há tempos; que não sou só hoje isto, que houve um tempo em que cabia nos braços dele e lhe arrancava pêlos das orelhas amarelas ou pedrinhas do nariz; que houve um tempo em que existi fora disto, fora da existência de quando se começa a escrever as primeiras letras e se aprende a falá-las, depois a dizê-las, mais tarde a escrevê-las.
Gosto de escrever sobre a minha infância e quando o faço lembro-me sempre das palavras do meu escritor preferido, António Lobo Antunes: Tive infância. Fui feliz, os crescidos tratavam-me bem. Escreve olhos cheios de infância, anda. Assim como assim talvez te ajude a viver.
E ajuda. Tive infância. Fui muito feliz. Os mais velhos (gosto mais desta expressão do que da palavra crescidos) tratavam-me muito bem. Olhos cheios de infância. Olhos cheios de infância e lá de longe uma voz a lembrar-me as sandálias da Colibri azuis e o espaço infinito dos abraços do meu urso amarelo, onde cabiam todas as mãos em que nunca mais toquei. Tenho saudades. Mas, sou muito feliz e tenho os olhos cheios de infância. Não me embaraça. Abraça.
Mariana Matos
http://ardemares.blogspot.com