Do Passado ao Futuro:
O sentido histórico nas comunidades da Califórnia
Estamos a entrar no verão de 2014 e já começaram, um pouco por todo o estado da Califórnia as festas populares das nossas comunidades. São, como se sabe, acontecimentos coloridos, que envolvem as tradições açorianas do Espirito Santo e as portuguesas dos Santos Populares. Ouve-se música, come-se sopas, vai-se à igreja, desfila-se nas ruas do mundo americano e preserva-se as tradições dos festejos populares açorianos com alguns (e ainda bem) salpicos de americanismo. Terminadas as festas, arrumam-se os tachos das sopas, limpam-se os salões e, particularmente, para as direções, lá vão uns merecidíssimos dias descanso. Este ritual repete-se anualmente. E ainda bem! Porém, há que registar estas festas, e os outros acontecimentos das nossas vivências luso-americanas. E há que conhecer e refletir a história da de todos os eventos que nos fazem comunidade, o popular e o erudito, o que se faz na rua e nos bastidores, o que se criou à margem e o que se criou dentro do mundo americano.
Há alguns meses, no congresso da Luso-America Education Foundation, realizado na Universidade da Califórnia em Berkeley, houve, como referenciei em outro texto, um painel dedicado ao grupo YPA (Young Portuguese-Americans). Ao longo desse painel, como também já o refleti, o jovem Jason Amarante, falou sobre o trabalho do grupo, na sua primeira reunião e disse algo que achei, crucial e parafraseio: há que olharmos para o futuro, mas com o alicerce no passado. Há que trabalharmos para salvaguardarmos o que os nossos pais e avós construíram. Boca Santa, como diria a minha avó paterna, que pelo menos para mim, era, é e será sempre Santa.
Tenho refletido, muito mesmo, as nossas comunidades. Para o bem e para o mal, sou um produto das nossas comunidades. Vim para os Estados Unidos com 10 anos, e foi nas comunidades da Califórnia, mais concretamente na da zona de Tulare que vivi a minha juventude e nas comunidades tenho estudado, trabalhado, sonhado, aprendido, rido e chorado. Trabalho com as comunidades há quase 40 anos. Tinha 18 anos quando comecei na rádio de língua portuguesa. Por isso a questão das nossas comunidades é-me pessoal. Faz parte de quem sou. Nunca, na minha vida de adulto, vivi à margem das comunidades, nunca apareci nelas só por conveniência, quando vou às atividades é porque as sinto. Ás vezes querendo distanciar-me, para meu bem, não consigo. Daí a minha reflexão quase diária sobre as comunidades, mesmo quando estou geograficamente distante.
Confio, veementemente, na capacidade dos nossos jovens, os que estão no seio comunitário e veem que há uma transmutação em processo e os que fora dela a vivem à sua maneira e também contribuem para as mesmas. Daí apoiar, incondicionalmente, a criação de um grupo de jovens (YPA) que reflita a comunidade de hoje e possa passar o nosso legado cultural. Mas tenho que admitir, com toda a sinceridade, que só acredito, com toda essa veemência, quando vejo que são jovens, como verifiquei no Jason Amarante, que têm os pés alicerçados no que se fez no passado e que respeitam as bases construídas, com suor, e algumas lágrimas, pelos seus pais e avós, ou seja: respeitam o que lhes antecedeu e são conhecedores da realidade do mundo americano. Isso não só fica bem e é bonito, mas é ser-se intelectualmente coerente e faz parte das regras essenciais de homens e mulheres cultos/as.
Sou um (para usar um termo da modernidade capitalista mundial) consumidor de tudo o que é comunidade. Vou a muitos acontecimentos da mesma, ao meu redor e quando posso mais longe; ouço rádios comunitárias; leio os jornais da comunidade, o Tribuna e os da costa leste; leio o que a imprensa em Portugal diz sobre as comunidades; leio os nossos romancistas e poetas emigrantes e luso-descendentes e tento acompanhar a vida comunitária na sua plenitude. Daí a minha preocupação com a falta de sentido histórico que se vê em alguns sectores da nossa comunidade portuguesa da Califórnia. Acho, fundamental que se compreenda o passado das nossas instituições, das nossas coletividades comunitárias, não para repetir, sem imaginação, o que já foi feito e que agora não resulta, ou tem resultados pacatos porque foi criado para um tempo e um espaço. É que muitas vezes estamos a ser antropológicos com a contemporaneidade comunitária. Só a falta de sentido histórico (sem o mesmo ser um peso, entenda-se) é que nos leva a ver, ouvir, ler e sentir alguns despautérios que ainda se cometem com alguma regularidade.
Quando em Dezembro de 1976 comecei um programa de rádio em língua portuguesa centro da Califórnia, com toda a rebeldia (e a ingenuidade) dos 18 anos de idade, já então estava consciente que só o podia fazer porque tinha por detrás a audácia e a capacidade dos pioneiros que me tinham antecedido e com os quais ainda iria aprender. Os pioneiros nesta zona da Califórnia, Joaquim e Amélia Morisson, Inácio e Margarida dos Santos, Ana Calado, Joaquim Correia Sr., entre outros, forma imperativos para a minha geração. Porém, o meu sentido de história, e o meu respeito estes e outros pioneiros, não foi uma barreira, pelo contrário, foi com esse sentido, muita admiração e simpatia que tentei, com outros, modernizar a rádio, fazer mais e melhor sem desrespeitar, nunca, o trabalho, a coragem e a capacidade de quem me precedeu e traçou os primeiros caminhos. A melhor homenagem que podemos fazer a cada pessoa que tenha trabalhado nas nossas coletividades comunitárias não é repetir o que fizeram, no seu tempo e para a sua época. Repetir o que já não faz sentido não é homenagear. Partir do legado que nos deixaram e com ele construir as instituições e as comunidades do futuro, isso sim, é homenagear.
Mais, não tenhamos preocupações ou pretensiosismos de sermos os primeiros a fazer esta ou aquela atividade, este ou aquele evento, ou os únicos e os maiores. Sempre tive problemas com o conceito de se fazer o maior bodo de leite, o maior desfile, a maior tourada, a maior e melhor dança de carnaval, a maior exposição, o maior congresso, a maior festa. Será que isso significa qualidade? Será que significa construção de alicerce para o futuro? Será que significa passagem do legado cultural?
Ao entrarmos num nova fase da nossa comunidade, com jovens adultos interessados nas nossas atividades culturais, é importante que se tenha a realidade histórica bem presente. Que se tenha a humildade de reconhecer o que foi feito e o que ficou por fazer. Que se tenha o sentido histórico da nossa cultura portuguesa em terras da Califórnia. E que se vejam as comunidades de hoje além dos trâmites tradicionais do passado.
Penso ser de suma importância que se saiba que se hoje temos um legado cultural a transmitir às futuras gerações, só o temos porque alguém plantou a semente e com os prós e contras de qualquer sementeira, com todos os triunfos e os dissabores, soube regar, colher e transformar. Mais, só com humildade e sentido histórico é que possamos crescer como comunidade e passarmos o legado cultural. Essa transição exige no presente, como exigiu no passado (mas infelizmente, nem sempre aconteceu) que a nossa presença numa instituição, seja ela qual for, seja sempre interpretada efémera, em comparação com a vida da instituição. Daí que o mais importante não é o eu, mas sim, o nós.
Há 38 anos quando comecei o programa de rádio “Voz do Emigrante Português” estava consciente que era apenas um rapaz que tinha sonhos (alguns meios-malucos), mas que só os podia concretizar, porque alguém, antes de mim, tinha cavado o terreno, tinha plantado, tinha irrigado para que eu não só pudesse colher, mas mais importante, criar novas colheitas. Tenho levado, praticamente toda a minha vida, e fá-lo-ei sempre que possa, a enaltecer esses homens e mulheres, construtores da nossa comunidade, que permitiram os meus so
nhos e os sonhos de muitos outros da minha e das seguintes gerações.
É urgente que se olhe ao estado da comunidade e que se parta para o futuro, mas plenamente conscientes do passado que permitiu as nossas vivências atuais e permitirá a passagem das mesmas, renovadas e revigoradas, às novas gerações de luso-descentes.
Diniz Borges
Junho de 2014
Diniz Borges é açoriano da Ilha tereira e há 45 anos vive na Califórnia. Professor,escritor com expressiva produção literária. Assina a página Maré Cheia no Jornal Tribuna Portuguesa onde divulga a produção cultural e literária da comunidde portuguesa,sobretudo a açoriana e não só.
Atualmente preside a APPEUC, associação de professores de Português dos estados Unidos e Canadá. Desde Janeiro de 2014 é Cônsul Honorário de Portugal em Tulare.
Diniz Borges,uma voz forte a falar sempre com grande competência e liderança em defesa dos direitos das Comunidades da Diáspora portuguesa,especialmente se preocupa com o futuro das novas gerações luso-americanas.