Soneto
Vive, se viver podes, inda na velhice,
e tua morte vai preparando aos poucos.
Não desejes, agora, nutrir sonhos loucos,
como se um futuro longo te sorrisse.
Sol já caiu; no fim do dia, alma nua
solta vontade antiga, que mais nada faz.
Ter medo de quê, se ganhámos tempo assaz,
despedindo-nos como quem tem à sua
vista eternidade? Porque, entretanto,
nada levas contigo, larga pesos, cuida
dos amigos, de ti, ensaia ida fluida,
insensível a perdas, qual fosses um santo –
fosses sábio, sereno, contra dor vazia,
na recusa do Lá, de vã ave-maria.
Árvore
Nunca, com tanta violência, sentira antes a força estática
da cor já pintando esta árvore do parque.
Todo emudeci – lentamente franzido na alma
como ribeiro onde caiu a folha suspirada.
Logo, abrindo mais os sentidos, vim dar com ela de leve
sorrindo na travessura que é por dentro mexer toda.
Nas margens, o Sol oferecia seu ouro costumado;
queria, e eu com ele, chegar ao centro das sombras íntimas
onde pássaros navegavam. Ai de nós, tão fora
do concerto interior
que no espanto diluímos e em seguida na procura.
Não entrava pela janela donde a observava. Sentado aquém
(sentemo-nos quando a Beleza dá em cansar-nos), eu tinha
no rosto a própria árvore que na janela quadrava, e tão inteira,
que as rugas eram troncos, profundos, nodosos, levando-me
plos idos caminhos e plos quais não irei jamais, que assim
se defende a vida nos seus enigmas, sempre adiando
o círculo mais fresco que as aves sem razão adejam.
Nunca, mal a vi senhora de si conversando
por toda a ramada, senti essa vontade de partir
que dizem acontecer aos santos sedentos de outra luz.
Asas de anjo corriam-na de ponta a ponta; por vezes,
baloiçava-se na copa sem tirar os pés da terra.
Da minha inocência dependiam seus movimentos.
Via-lhe, se me frisava, os nervos, distintamente.
E quando, tendo apercebido entre nós, no peitoril da janela,
uma pomba, eu ia para a beijar, como
se deve a quem se nos oferece tão matinalmente, a árvore
recuou para o seu lugar no parque onde a vira quando
abri a janela para a violência que os olhos merecem.
Atrás dela foi a pomba, e o ribeiro só de a sentir
franzia-se nas margens sonhando-a parada sombra.
O Sol endireitou-se; mas daqui observo ainda
que a ronda, sôfrego, sem a castigar onde queria.
Budapeste,1985
Ernesto Rodrigues
ERNESTO RODRIGUES,Nascido em Torre de Dona Chama (Portugal) a 17 de Junho de 1956.Poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e tradutor de húngaro.
É professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente de direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
Principais obras: Várias Bulhas e Algumas Vítimas, novela, 1980; A Flor e a Morte, contos e novelas, 1983; Sobre o Danúbio, poesia, 1985; A Serpente de Bronze, romance, 1989; Torre de Dona Chama, romance, 1994; Histórias para Acordar, contos para a infância, 1996; Sobre o Danúbio / A Duna Partján, poesia e ficção, 1996; Pátria Breve, miscelânea, 2001; Antologia da Poesia Húngara, 2002; O Romance do Gramático, romance, 2011.
Na crítica e ensaio, seleccionamos: Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998; Cultura Literária Oitocentista, 1999; Verso e Prosa de Novecentos, 2000; Visão dos Tempos. Os Óculos na Cultura Portuguesa, 2000; Crónica Jornalística. Século XIX, 2004; «O Século» de Lopes de Mendonça. O Primeiro Jornal Socialista, 2008; A Corte Luso-Brasileira no Jornalismo Português (1807-1821), 2008; 5 de Outubro – Uma Reconstituição, 2010; Tomé Pinheiro da Veiga, «Fastigínia», estudo, edição, variantes e notas, 2011.
Responsável pelos 3 volumes de Actualização (Literatura Portuguesa e Estilística Literária) do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho (2002-2003), editou, entre outros, Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Trindade Coelho, José Marmelo
e Silva, António José Saraiva.
Referência Biobliográfica in:http://amadeubaptista.blogspot.com.br/search?q=ernesto+rodrigues
crédito foto Ernesto Rodrigues: http://tempocaminhado.blogspot.com.br/2012/05/academia-de-letras-de-escritores.html
crédito foto Árvore: Onésimo T.Almeida