DOR
Num velho manual de Latim, contava-se a história da greve que os intestinos decidiram levar avante, para demonstrar, ao resto do corpo, que não eram menos nobres pelo facto de trabalharem com a matéria-prima à qual os obrigava sua função. Todo o corpo implorou aos intestinos que parassem tal birra. Os alunos que traduziam esta anedota riam a bom rir. Mas, pelos vistos, já em Roma havia obstipações, colites, cancros de cólon e quejandos.
As dores provocadas pelos gases circulam, assemelham-se a uma tempestade de vento, podem parar em cima do coração e uma pessoa é levada a pensar que está a ter um ataque cardíaco; e, logo a seguir, caprichosamente, saltam para os rins, e dos rins para as costas, e das costas para as mamas. O estômago fica atrofiado e não apetece pôr para dentro aquilo que de dentro não sai. É difícil trabalhar com dores. É quase impossível pensar com dores. As dores tiram o sono.
A nossa época, obcecada com o corpo do prazer, esconde por todos os meios o corpo da dor (a publicidade que promete tirar as dores também procura esconder a dor). Mas a dor persiste. A dor personifica, ao contrário do prazer, que dilui. Atinge picos insuportáveis, incompreensíveis. Pode conduzir à revolta, como também à santidade.
Mas talvez que o melhor da dor seja que ela convoca a piedade e o amor abnegado. O desejo é, por essência, interesseiro – mas aproximar-se de um doente, cuidar dele e amá-lo é sinal absoluto de serviço aos mais fracos. David Stove, um filósofo australiano do nosso tempo, considera os hospitais uma prova inequívoca de que o darwinismo é uma teoria errada, pelo menos no que concerne à espécie humana.
Vale muito a pena ler o seu livro "Darwinian Fairytales – Selfish Genes, Errors of Heredity and Other Fables of Evolution"(1995), escrito pouco antes da sua morte. Poucas vezes a Filosofia é tão hilariante, tão próxima do bom senso, com um refinado humor anglo-saxónico a apontar o dedo aos disparates da conceção do "struggle for life". A claríssima argumentação de Stove (não é preciso saber Filosofia para o ler) vale ainda mais porque ele nunca foi um crente.
Nós compadecemo-nos dos que sofrem. Deste modo, a dor nos define quanto ao resto da natureza – se é que outros animais não se compadecem da sorte dos seus irmãos: os chimpanzés fazem-no; os cães fazem-no; em tempo de fome, os morcegos dividem a comida por todos… Porém, para o que aqui interessa, a espécie humana, no seu normal, não tolera a crueldade, a impiedade. Ai gente que trabalha de graça em favor dos que sofrem!
Doem os pés, doem os joelhos, ao subir das escadas, para quê fingir que não doem?! Doem as costas, os bicos de papagaio. As enxaquecas são medonhas. O reumatismo mói, mói, mói… Muitas destas dores acordam as pessoas a meio da noite, elas ficam a contar as horas, estudando posições na cama, tique-taque-tique-taque.
O prazer distrai, aligeira, faz uma pessoa esquecer a sua condição, mas não há pessoa com dor que não deseje a saúde, o sol morno da Primavera. O facto é que a dor concretiza de modo implacável. Obriga à consciência. O prazer embebeda, dá poder; a dor retira-o, humilha, enfraquece, é uma das portas privilegiadas para a sabedoria, a beleza e a santidade.
Paradoxalmente, nenhuma pessoa humana normal a deseja. E – paradoxalmente -ainda bem que há drogas disto e daquilo para esta maleita e para aquela. A dor é, pois, muito mais complexa do que o prazer, que é liso.