Burnt out
Sara acordou com o ruído de estranhas palavras a martelarem-lhe o cérebro. Depois de tentar ainda por minutos retomar o sono ao ver que ainda nem um fio de luz lhe entrava pela janela, acendeu a luz e olhou para o relógio. 5 da madrugada. Só às 3h tinha conseguido adormecer… só duas horas de sono agitado por pesadelos ansiosos, como era costume nos últimos meses. Aquela ansiedade, o aperto no peito, a falta de ar, o cansaço crónico e inabalável, o corpo dorido como se tivesse sido cilindrada por um camião. Devia aproveitar para trabalhar. Tanto para fazer! Tantos trabalhos para corrigir, e-mails para responder, relatórios, teses… e a sua mente parecia um deserto acabado de bombardear. O cérebro árido e vazio recusava-se a estabelecer as ligações necessárias. Tudo era uma folha em branco. A vida toda se convertera numa folha em branco impossível de lavrar, um branco que gritava a sua indelével e poderosa impermeabilidade a qualquer tentativa de o lavrar de o sulcar. Tentava ler. Juntava as frases como uma aluna da primeira classe, mas não lhes decifrava o sentido. Ao chegar à terceira frase já se esquecera do conteúdo da primeira. E havia deadlines, centenas de deadlines, reuniões inúteis, actividades banais.
Trocara de profissão, de continente, de universo para aceitar o novo desafio e alimentar “a bicha solitária” (as palavras eram de Vargas Llosa nas Cartas a um jovem romancista) chamada literatura que lhe remexia as entranhas, que a queria sugar e alimentar-se da sua vida, dos mundos a conhecer, dos sonhos a viver, dos suspiros, dos risos e das lágrimas. Contudo, agora, passados cinco anos, via que a “bicha solitária” se convertera numa “chocadeira” de artigos académicos que iam picando os ovos e sacudindo a tenra penugem das frágeis asas para um mundo onde sucumbiriam esmagados pela poeira do tempo – como os pintainhos da sua infância que agasalhava sempre ao anoitecer em caixas de papelão, mas dos quais inexplicavelmente alguns apareciam mortos na manhã seguinte.
De resto, havia pedaços de prosa, retalhos dispersos do que podiam ser contos, crónicas, narrativas de viagem e que se iam somando em ficheiros, por vezes perdidos. Nada de consistente, nada de satisfatório em cinco anos de andanças, cruzando países, analisando literatura, dissecando teoria. E, afinal, no meio disto tudo, a” bicha solitária“ reclamava cada vez mais insatisfeita e mal nutrida…
Naquele dia teria de entregar os dossiers de candidatura para renovação do contrato na universidade. Naquele momento, sentia o coração vazio, enjaulado pelas fronteiras da incerteza. O carreirismo, a ambição desenfreada, avassaladora, que tudo pode arrasar, tantas vezes para compensar o mérito inexistente – que lera em cada gesto e em cada palavra de muitos colegas que a tinham rodeado nos diversos contextos profissionais e países onde trabalhara -nunca a afectara. As suas ambições sempre haviam sido modestas, mesmo elementares: uns raios de sol, uma nesga de mar e tempo. Queria, sobretudo tempo –o bem mais precioso à superfície da terra. Como escrevera Raduan Nassar na sua Lavoura Arcaica: “embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento” (p. 40). Tempo para aprender, para conhecer, para viver, para descobrir novas cores, novos sabores, vidas, melodias, mares…
Agora encontrava-se numa encruzilhada. Passara os últimos meses sepultada num mar de papéis a organizar diligentemente os treze dossiers exigidos. Tocara a bainha da loucura, do desespero e afundara-se no estado de completa alienação.
Faltava apenas entregar. E depois? Permaneceria ali com as raízes a flutuar, como uma flor de lótus a enterrar-se no lodo das esperanças vãs?
Remexe nos livros da estante e, ao folhear o Diário de Torga, este acena-lhe com uma passagem certeira localizada em Coimbra a 22 de Outubro de 1945: “O verdadeiro triunfador cria as condições da sua realização. Que se importa a gente com as doenças de Beethoven, e que pesam elas na sua obra? A natureza, quando dá génio, dá forças e coragem para vencer todos os obstáculos que não o deixam desabrochar.” (Torga,2010: 253).
Dirige-se para a cozinha. Liga o fogão. Leva os dossiers um a um. Vai ateando suavemente as chamas a cada uma das folhas. Tudo engolido numa bola de fogo única, burn, burn, num sol tantas vezes adiado que rasgará, enfim, as nuvens da incerteza e brilhará no calor da liberdade, à sombra da palavra, entre as margens do tempo.
Dora Nunes Gago
Dora Nunes Gago, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, é professora de Literatura na Universidade de Macau (China).