Árvore loura da Ilha
O Brasil que floresce nas encostas está mais belo do que nunca, nem se parece com o país dominado pelas flores do mal.
As cabeleiras louras que se derramam das copas dos garapuvus redimem a beleza do país e da Ilha de Santa Catarina, de cujas terras santas são a árvore símbolo.
É o garapuvu, ou a canoa de um tronco só, o “pau de vintém”, monumento de 30 metros de altura com sua inconfundível cabeleira florida, em cachos patriotas – unindo o verde da Mata Atlântica ao amarelo ouro dos seus galhos em forma de taça.
Cálice onde se processa a consagração da beleza da mata nativa, sob o pomposo nome científico de Schizolobium parahyba. Por causa do tronco espesso, com galhos que se abrem somente na copa, o garapuvu era utilizado na fabricação de canoas de um pau só, entalhadas pela mão do pescador. Deslizavam, deitadas, pelas águas espelhadas das baías.
O florescer da árvore-símbolo está em pleno curso, começou em outubro e vai até dezembro, oferecendo aos viventes uma inesquecível visão do Paraíso ilhéu. Mas não a única. Há mais belezas balançando ao vento. Cumprimento dois ipês, sentinelas de minha porta, que trocaram de roupa, topete e tapete.
O primeiro, rosa, de um delicado matiz, fornece à minha calçada um inefável tapete, como aqueles só merecidos pelos cardeais da procissão de Corpus Christi.
O segundo, de um amarelo inebriante, embriagaria o próprio Van Gogh, obrigando-o, quem sabe, a cortar sua segunda orelha e a “carregar” nos amarelos dos seus girassóis – de sorte a desafiar o próprio Sol.
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Sinto-me um pouco homenageado pelas manhãs translúcidas deste pré-verão tão ameno, de alvoreceres frescos e tardes quentes. É o efeito dessas modernas Primaveras, rimadas pelos versos do bardo saxão:
– “The Spring puts a spirit of youth in every thing”…, poetou o bardo Shakespeare, enxergando na estação que se inaugurou há um mês um certo elixir rejuvenescedor.
Um amigo telefona, alheio à mudança de roupa nas árvores, e desfolha a sua última indignação:
– Escuta, não vais dar um pau nesses sem-vergonhas do colarinho-branco que assaltam o Brasil?
Não. Hoje não deitarei sobre este canto de página um único pingo de tinta que remotamente se relacione com falcatruas ou outras flores malcheirosas.
Estou usando o meu tesourão de jardim para decapitar o noticiário da má política amarelo-esverdeada.
Amarelo, hoje, só os garapuvus da Ilha e o ipê do meu jardim.
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Amoras e amores
Na esquina de um bairro outrora manso e tranqüilo, como Coqueiros, vivem uma amoreira e sua vizinha, a pitangueira. O que haveria de tão extraordinário a justificar o “registro” da existência desses dois arbustos frutíferos?
Ora, a simples constatação de que, em Floripa, ainda existem casas com um quintal. Como naquelas das praias da Saudade e do Meio, em Coqueiros, idos dos anos 1960… – um “concentrado” de pitangueiras e goiabeiras, um canavial intercalado pelo verde dos butiazeiros, um sussurrar de folhas de palmeiras e, claro, a sombra fresca dos coqueirais.
Se, como na “Aquarela” de Ari Barroso, havia “coqueiros dando côco” naqueles lados, esses quintais ficavam nas praias do Continente – com a ponte e seus trilhos de madeira servindo de bucólico caminho para os ônibus em cujo letreiro se lia: Bom Abrigo.
Primeiro, havia Coqueiros e suas prainhas. Depois, o bom e belo Abrigo. A praia em meia-lua, entre o verde crespo das goiabeiras, pontificando, entre a carapinha reluzente de pitangueiras. E havia as pitangas maduras, oferecendo seus “lábios” vermelhos à mordida insaciável dos pirralhos. Descoberta uma árvore das frutinhas vermelhas, zás! A “raça” atacava e comia tudo, não sobrava uma baguinha pra contar a história.
Passei, de carro, pelo quintal dessa casa sobrevivente, residência das pitangueiras. Tive vontade de parar e voltar à infância, atacando o pé. A idéia não durou cinco segundos. Uma buzina histérica repetiu-se à minha retaguarda e voltei ao mundo dos vivos. Estava numa fila de automóveis e, nas imediações, não havia a menor hipótese de estacionamento. Fazer o quê? Tirar o pé do freio e seguir a vida.
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Certa noite, adolescente em Coqueiros, inebriei-me em caipiroscas, enquanto a atmosfera se impregnava dos sons rebeldes da época – os Beatles, sim, antes de “Sargent’s Pepper Lonely Hearts Band”. A vida era doce – apesar do sal que se desprendia de “Vidas Amargas”, James Dean no inesquecível filme de Elia Kazan – que deu som e imagem a um extraordinário John Steinbeck (“East of Eden”).
Para celebrar os sons e os cheiros da Praia do Meio, havia a prosa de Othon Gama D’Eça, na aquarela de “Homens e Algas”:
– Janelas besuntadas de azul, com uma data no alto, ranchos esguios, baixos, cobertos de telhas salitradas – e canoas que recendiam a algas e tintas frescas.
Gostaria de reviver esse tempo, debaixo dos coqueirais.
Entre pitangas, amoras e amores.
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