DEDOS DE MANTEIGA
Às sextas íamos para casa do Zé Manel. Na altura a Vila Nova não era aqui ao lado: era noutro hemisfério. Comíamos batatas fritas e fazíamos os concursos parvos que os adolescentes fazem.
Depois, ligávamos a televisão. O Zé Manel era o Hulk Hogan. O Tito era o Ultimate Warrior. Eu era o Rick Rude, The Sexiest Man Alive, que dizia alarvidades e beijava as espectadoras de língua.
Foi uma fase tonta, de que nenhum de nós se orgulhará. Mas éramos garotos e protestantes. Não tínhamos autorização para mais. A TV americana, que só se via do lado de lá da ilha, exercia sobre nós suficiente fascínio para constituir superação.
E não só a TV. Os chocolates. As sapatilhas. As calças de ganga.
Continentais visitavam a ilha e punham-se no encalço de umas Levi s 501. Nós tínhamos um tio cuja vizinha fazia compras no BX. Um amigo que tinha um amigo cujo pai entrava no Comissário.
As sapatilhas eram o Santo Graal, porque nos permitiam subir de casta. Eram sapatilhas da Base, adjectivo supremo. Quanto eu tinha 12 anos, Nike; 14, Roos; 16, Mirage; 18, Reebok. Houve miúdos que fizeram o pleno. Queríamos tocar-lhes.
Mas, sobretudo, residiam atrás disso décadas de relação com os americanos. Famílias inteiras sobreviviam dos americanos. Até gente aqui do Sul chegou a trabalhar para os americanos, no auge da Guerra Fria. O meu avô trabalhou para os americanos.
Agora, tudo isso se está a acabar.
Ainda ontem comi um Butterfinger. Às vezes como um, para matar saudades: um Butterfinger, um Hershey s, um Three Musketeers. Nunca mais encontrei Mr. Goodbar ou Babe Ruth, de que tanto gostava. De qualquer modo, em breve todos eles terão desaparecido.
Mas o meu problema é o menor de todos, não é?
Joel Neto,
(*) Publicado no Diário de Notícias,Portugal,ed.20-01-2015
O MEU AMOR
Há dias, uma rádio local passou Jorge Palma. Já não ouvia aquela canção há que tempos. Pus o som no máximo e desatei aos berros: O meu amor tem lábios de silêncio/ E mãos de bailarina/ E voa como o vento/ E abraça-me onde a solidão termina.
Isto era impossível há três anos, quando ainda vivia em Lisboa. Jorge Palma tornara-se demasiado uncool.
Fiquei a pensar se o facto de o cérebro do Homo Sapiens estar a encolher tanto desde que se criaram as cidades teria a ver apenas com a quantidade de tarefas de que a cidade o dispensou. Talvez tenha a ver também com as coisas de que a cidade o proibiu de gostar.
O jovem intelectual lisboeta é hoje, acima de tudo, um esteta. Cultor e polícia do bom-gosto, está pronto a morrer se algum dia for apanhado a ultrapassar a linha. A não ser que se trate de um prazer culposo, joker que só pode usar três vezes.
A vida do jovem intelectual lisboeta não é assim tão diferente da do Pac-Man.
Devemos-lhe muito: sem ele, isto era uma bandalheira. Estar na pele dele, não. Foi um sufoco.
Um jovem intelectual lisboeta vive refém da sua personagem. Não arrisca e raramente experimenta. É céptico por disciplina militar e absoluto por princípio. Não se esparrama no sofá a ver a Jennifer Aniston. Nem vai ao café de sweatshirt. Nem bebe uma Super Bock pela garrafa, a não ser que esteja a cozinhar, com jazz em fundo, e haja fotógrafos.
Um jovem intelectual lisboeta jamais cantaria Jorge Palma, a não ser que o Jorge Palma se tivesse tornado tão uncool, tão uncool que houvesse dado a volta e ficado cool de novo.
Portanto, só para cantá-lo aos berros já valeu a pena partir: O meu amor ensinou-me a chegar/ Sedento de ternura/ Sarou as minhas feridas/ E pôs-me a salvo para além da loucura.
O facto de o meu cérebro estar outra vez a crescer é apenas um bónus.
* Joel Neto
É jornalista e escritor (romance e crônica).
Nascido na Ilha Terceira,Açores.jovem escritor
considerado, por muitos, como um dos paradigmas do
rejuvenescimento da literatura açoriana.
Nota: Publicado no Diário de Notícias,edição de 3 de fevereiro de 2015.