Almeida, Onésimo Teotónio e Leonor Simas-Almeida (orgs.). Eduíno de Jesus: A Ca(u)sa dos Açores em Lisboa – homenagem de amigos e admiradores. Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 2009.
Abrindo com “Uma justificação desnecessária”, de Onésimo Teotónio Almeida e Leonor Simas-Almeida, este volume está dividido em três partes: Testemunhos, Memorabília e Diário em e-mail. A primeira secção recolhe uma trintena de homenagens, evocações do Poeta por parte de amigos e estudantes, impressões críticas da obra, alguns estudos breves mas incisivos da mesma. Poder-se-ia dividir estas duas dúzias e meia de textos entre perfis do homem e do amigo; apreciações críticas da sua obra, e uma terceira categoria combinando aspectos das outras duas – em que os amigos e admiradores do poeta, conquanto tencionem principalmente render-lhe uma homenagem como amigo, cavalheiro, homem de cultura em geral e da poesia e crítica literária e das artes visuais em particular, também fazem referências, por vezes muito perspicazes, a alguns aspectos da obra poética de Eduíno de Jesus. O principal foco dessas reflexões críticas é o recém-publicado volume Os Silos do Silêncio (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005), tomo esse que reúne os três volumes de poesia eduinianos editados na década de 50 – Caminho para o Desconhecido (1952), O Rei Lua (1955) e A Cidade Destruída durante o Eclipse (1957), acrescidos que são esses três volumes em Silos do Silêncio por uma secção que inclui Inéditos & Dispersos.
Dentre os perfis saliento uns quantos. O de Alzira Silva é um primor de justiça e um exemplo, não surpreendente para quem está habituado aos escritos dela, do emprego sábio das palavras necessárias para salientar a raridade do homenageado, do escritor, da sua sabedoria. Evoca ainda o construtor de poemas, o conhecedor enciclopédico da cultura, o homem suave de invejáveis dotes oratórios, a delicadeza. E depois a frase que, para quem tenha o privilégio de conhecer o homenageado, diz tudo: “É um gentleman – e aqui não cabe a tradução portuguesa da palavra.” (22)
Constitui outro perfil revelador de vários aspectos da personalidade humana e cultural do Poeta o texto de Ana Maria Almeida Martins, que nos chama a atenção para as exigências que se impõe o Poeta na preparação do manuscrito de Os Silos do Silêncio. António Manuel Couto Viana evoca uma amizade exercida epistolarmente – que já dura há cinquenta anos. Carlos Enes recria uma noite na Casa dos Açores em que uma prima é obsequiada, pelo gentleman-mor da diáspora açoriana no continente, com um beijo na mão. De Eduardo Bettencourt Pinto lemos que “Ouvia falar de Eduíno de Jesus sempre de modo encomiástico, pela qualidade da sua obra poética e ensaística. Fui descobrir, na ilha de Vitorino Nemésio, um senhor afável, calmo, de aperto de mão seguro e de uma enorme cortesia.” (45) George Monteiro realça do homenageado a “capacidade de sentir prazer em tudo o que partilha com os seus amigos” (73) e este incisivo e justo perfil moral: “Incrivelmente despretensioso e sempre reticente em aparecer em primeiro plano, no entanto, ele brilha serenamente em momentos e espaços de amena cavaqueira.” (73). Uma galeria de amigos e amigas proporcionam-nos outros perfis, destacando momentos privilegiados ou tão-só evocações duma quotidianidade partilhada que, apesar disso, patenteiam traços dignos de registo por se tratar da pessoa de Eduíno de Jesus: Maria Beatriz Franco, Maria de Fátima Lencastre, Maria Lúcia M. da Costa (Figo), Olegário Paz. “Saudação destrambelhada ao Eduíno de Jesus” de Onésimo Teotónio Almeida é um magnífico texto trespassado de memórias, anedotas, encontros com o Poeta, reminiscências e muita amizade e carinho e o quantum satis de humor que é apanágio da personalidae e quantas vezes da escrita onesimiana. Este texto de Onésimo Almeida é seguido de outro, “Toada por um poeta vivo”, que o autor enviou como mensagem para uma sessão de lançamento de Os Silos do Silêncio em Toronto a que não pôde assistir. Imagino quão comovido deve ter ficado Eduíno de Jesus ao ler a homenagem do seu antigo aluno Stefan Halikowski-Smith que vem saudar o professor de Literatura Portuguesa, que ensinava este curso para estrangeiros com uma antologia organizada por ele – destacando um pormenor que no aluno ficou gravado para todo o sempre: o do mestre que sabia casar a literatura com a história.
Entre as apreciações críticas – que se enquadram no âmbito desta homenagem ao Poeta e que, nalguns casos, se permitem referências de carácter pessoal ao homenageado – destacam-se as contribuições de António M. B. Machado Pires, que escreve do livro Os Silos do Silêncio: “Este livro é uma vida.” (27) – abrangendo, como abrange, mais de meio século de vivências e esforços poéticos. Trata-se, segundo Machado Pires, duma poesia de “identidade não filiada . . . [pois] um bom escritor nunca é alinhado: ele é que alinha os outros!…” (27). E cita o lema dos Cadernos de Poesia, “A Poesia é só uma” (28) para evocar a poesia de Eduíno de Jesus – que parece não ter filiações e fidelidades (para pedir emprestado outro termo tão seniano) senão a si mesma.
Fátima Freitas Morna sonda o enquadramento de algumas das raízes estéticas da poesia de Eduíno de Jesus, ao qual cabe “porventura melhor do que nenhum outro, o qualificativo de ‘modernista'”. E conclui: “A sua obra revela, discretamente, a poesia de alguém que leu e interiorizou muita poesia, traçando de forma igualmente discreta a sua linhagem: uma linhagem de afinidades electivas, de memórias de leitura aglutinadas à experiência pessoal, não programaticamente definida mas antes buscando a adequação fundamental da palavra em cada momento, como se pode ver no poema ‘Os teus olhos mansos’, de Caminho para o Desconhecido“. (50-51)
Fernando J. B. Martinho – especialista na poesia dos anos 50 – refere-se ao livro A Cidade Destruída durante o Eclipse como exemplo de “uma consciência apocalíptica, de que se encontra múltiplos sinais na poesia da época. São os temores do perigo atómico que estão, em larga medida, na sua origem.” (61) Martinho destaca, do livro eduiniano mencionado, analisando-os pormenorizadamente, os poemas “O que disse o Inominado” e “Day after”. (62)
Fernando Pinto do Amaral, no seu “Uma gramática do silêncio – a propósito d’Os Silos do Silêncio“, foca a perspectiva do poeta sem pressa, disponível e pacientemente, dir-se-ia eternamente, à espera da visita da Poesia – e depois à espera, muitas e muitas décadas, de dá-la à estampa da luz crítica. O que leva Pinto do Amaral a falar, a propósito do poema “O Silêncio”, de uma poesia que é “quase uma incubação, ou seja, de um lento e contagiante processo de aprendizagem íntima cujas regras não vêm em nenhum manual e que de certo modo constrói ao arrepio de todas as teorias, facultando-nos uma autêntica gramática do silêncio“. (67-68)
Partindo duma abordagem semiótica, José Mourão debruça-se sobre “o trabalho do significante e sobre a questão da interlocução” (84) Com base no título do volume de poesias eduiniano, conclui que a figura do silo “é elucidativa: inventário, depósito da memória, armazenamento de materiais, colecta de flores de leitura, arca (de Noé). O silêncio é de facto o grande personagem que habita os silos: devastador, inquietante, Ínculo.” (84-85).
José Francisco Costa, em forma epistolar – ou não seria ele especialista na matéria! – escreve ao Poeta: “o teu livro sabe-me a um longo silêncio falante, pois que o som da tua escrita é um eco de uma conversa para a qual o leitor avisado, e só ele, é atraído. . . . Vejo os teus poemas como os sinais da dispersão de ti para quem te quiser ‘ajuntar’ no espaço da compreensão.” (91) Não deixa ainda José Francisco Costa de referir-se à “componente insular de uma boa parte dos teus poemas (quase todos de pequena extensão – para que não se dilua o significado – como ilhas.) (93). Depois de colocar Eduíno de Jesus a par de poetas como Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Herberto Helder e outros esplêndidos poetas portugueses” (103), Leons Briedis, caracteriza a poesia do autor de Os Silos do Silêncio como “poeta existencialista e metafísico que tenta revelar a alma e não a vida, daí que os seus poemas nos soem tão dramáticos e trágicos.” (103
Em “Ler e reler”, Maria Lúcia Lepecki propõe um esquema a elaborar – e que esperamos que elabore – sobre a poética eduiniana, baseado nos seguintes temas: “A simplicidade como arte”, “A afectividade como arte”, e “Uma arte de música”. (111-112).
Em “Da ornitomancia e do sexo dos anjos”, Roxana Eminescu efectua felizes sínteses como esta: “Leio os silos do silêncio como armazéns, reservas de palavras in absentia, promessas, compromisso de Verbo por vir, lugar entre-dois, fronteira cheia e não linha de demarcação, onde, no desvio entre a sua origem e o seu fim, se inscreve a condição humana.” (133)
Dentre o que poderíamos chamar os perfis com crítica dentro – as evocações simultaneamente do homem e do escritor – salienta-se uma meia dúzia de textos, a começar pelo texto de abertura, da autoria de Álamo de Oliveira. Trata-se dum perfil do Autor homenageado delineado com referências aos seus conhecimentos das várias artes – da literatura, às artes plásticas, ao cinema – não se descurando nunca a indelével imagem do homem, do perfeccionista, do amigo, do mestre, do cavalheiro.
No seu testemunho, Alcindo Augusto da Costa traça um perfil da pessoa e da personalidade poética do homenageado, enfatizando o seu percurso histórico nas artes: das primeiras experiências poéticas no Círculo Literário de Antero de Quental e posteriormente aos anos de estudante em Coimbra. Incide sobre a edição, por parte de Eduíno de Jesus, de trabalhos de crítica literária, de artes plásticas, de textos prefaciais a vários livros, a actividades editoriais (co-fundação de jornais e revistas literárias) e conferências. Releva ainda as actividades do Presidente da Casa – e da ca(u)sa – dos Açores em Lisboa.
Alude Daniel de Sá ao “rasto insubstituível de sabedoria e amizade” que o homenageado deixara no Encontro de Escritores Açorianos. “No olhar de Eduíno de Jesus vê-se-lhe a alma. E percebe-se uma inteligência culta que parece querer esconder-se para não envergonhar quem tais dons não tenha.” (42) E afirma, em relação a Os Silos do Silêncio: “Obra de mais de meio século de vida com poesia dentro.” (42). Conclui Daniel de Sá com uma composição sua feita de versos escolhidos de Eduíno de Jesus – uma espécie de cadáver esquisito, só que desta vez efectuado por um só escritor com versos de outro tirados do seu original contexto mas não destoando dele. Com a ajuda do computador embora, o texto acaba por configurar-se em sábia disposição caligramática na página – um perfil humano, nada esquisito, artisticamente composto por um super-dotado retratista com matéria fornecida pelo amigo a quem homenageia.
(cont…)