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Irene Maria F. Blayer também dedica a sua homenagem ao homem e ao escritor. Depois de evocar a passagem de Eduíno de Jesus pela Brock University, onde foi justamente homenageado, Irene Blayer incide sobre aspectos salientes da ars poetica eduiniana, afirmando, acerca do poema “Sopro”, “Talvez seja em poemas como este – em que o lexema “espuma” adquire um relevo especial – que se podem antever os antecedentes açorianos deste poeta, cuja poesia, sem deixar de evocar as suas ilhas de origem, sobretudo pelo lado imagético da sua obra, pouco ou nada tem de ostensivamente regionalista” (81).
Em “Eduíno de Jesus, a alma do poeta”, Lélia Pereira da Silva Nunes efectua outra perspicaz quão eloquente síntese do homem e do poeta: “Uma poesia que manteve longe dos olhos do público leitor desde o final dos anos cinquenta por puro cuidado, esmero, extremo zelo, por não a considerar pronta, finalizada. Mais de meio século de vida em poesia e cada poema na conta certa como partículas da alma do poeta.” (101)
No texto “Eduíno, a nuvem e a deusa”, Urbano Bettencourt foca o momento em que a geração de Eduíno de Jesus interveio no sentido de trazer o modernismo para a literatura açoriana, destacando para comentário “A nuvem e a deusa” (de 1953), que pinta um quadro poético da Ponta Delgada daquela época.
Conclui Victor Rui Dores esta breve galaria de perfis críticos – palavras essas que o signatário deste texto também faz suas – “Com ele [o Poeta Eduíno de Jesus] aprendi que não se coloca o escritor de um lado e a obra do outro, mas que ambas devem ser entendidas como escuta, decifração e conhecimento” (149)
Memorabília[1] compreende uma série de “escritos”, como lhes chama a sua compiladora, Maria Angélica Ribeiro, os quais constituem notinhas de despedida-até-amanhã dos amigos e colegas, muitas vezes escritas em páginas de calendário, mementos, um texto poético redigido numa caligrafia miudinha mas impecável e eminentemente legível e que me faz pensar no esmero com que eu, menino de escola, cultivava a minha própria caligrafia – que depois a emigração fracturou. O importante é que destes breves textos emerge a reconhecível personalidade do Mestre – a finura que todos nós (re)conhecemos que temos tido algum trato com Eduíno de Jesus, a elegância de pensamento e expressão e (aqui, sim, surge uma faceta que o signatário deste texto conhecia mal): o eloquente sentido de humor. Nunca humor a expensas de outrem, nunca humor que de longe se aproxime do grosseiro, nunca humor de magoar ninguém. Aliás, caracterizá-lo-ia como um humor em grande parte derivado de jogos verbais, de brincadeiras ortográficas, da transliteração duma frase em inglês, da citação dum verso duma cantiga medieval invocado por e inserido num (des)contexto quotidiano, uma frase latina citada a (des)propósito, uma graciosa paródia de final de carta cliché. Aqui ficam, a título de exemplo, alguns dos meus espécimes favoritos: “solissita-se à diguenícima prezidente do Concelho Directivo a finesa de acinar estas pautas. Com respeitosos comprimentos. Eduíno”; “Se não fô-sse muito encómado, agardecia às Setoras do Concelho Directíssimo o obséquio de enformar há cerca de quem é agora o Delegado de Inguelês. Mui respeitosamente, Eu”; “comprimenta ifuzivamente a elôstre cetora e fás-lhe çaber o emenço praser que cente em lhe poupar alguns paços por causa deste pressiozo ducomento”; “No prosseguimento da minha assídua correspondência com a Drª Laura Godinho, solicito a gentileza de mandarem dactilografar etc. Tem que i u véri mâch. Eduíno”. Numa das missivas, porém, assina “e do hino”.
Cerca de metade do volume, Diário em e-mail, é dedicado à correspondência por e-mail entre Eduíno de Jesus e Onésimo Almeida, sendo incluídos no volume apenas os textos eduinianos. Trata-se tanto duma correspondência entre grandes amigos como dum minucioso diário, em que a amizade se traduz numa partilha de minudências de mesa-de-café, onde nem falta a anedota graciosa e deliciadamente contada. Comove, em alguns trechos desta prosa epistolográfico-diarística, a resistência do Poeta à efemeridade a que o e-mail tantas vezes convida e conduz. Não assim com Eduíno de Jesus, que trata os e-mails do amigo e os dele próprio com o mesmo grau de deferência com que os trataria se eles tivessem sido laboriosamente batidos à velha máquina Underwood. Também é comovente a genuína humildade do Sábio que mantém, para a aprendizagem do mais corriqueiro termo, uma disponibilidade total: “Meu Caro […] E obrigado pela lexia “juke-box”. Tinhas percebido bem “jug-box”, porque foi o que eu disse e é como vem num conto do Borges Garcia. Ele deve ter transcrito de ouvido. O meu dicionário não traz nem “jug-box”, nem “juke-box”. Também não regista “juke”. Deve ser termo da linguagem familiar, não?”
Volume de textos essencialmente homenageantes, de grande valor como documentos humanos que trazem à tona a presença do homem. Alguns deles, como que por entre os interstícios da sua circunstancialidade, deixam ver a figura do expectante Poeta, do crítico da cultura. Alguns destes textos efectuam excelentes sínteses doravante indispensáveis para outras abordagens à obra de um dos mais admiráveis poetas portugueses dos últimos sessenta anos. A memorabília revela-nos, para os que a não conhecíamos, facetas deliciosas e admiráveis dum homem que era um sábio do convívio e reconhecia a preciosa contribuição que o humor pode trazer à vida. Transparece dos textos reunidos nessa memorabília não só a amizade do amigo e colega, mas o inabalável amor à língua, pois todos os exemplos fornecidos têm algo a ver com um inegável love affair entre o Escritor e a linguagem. É ainda, em grande parte, desse amor que nos fala a secção dedicada à correspondência por e-mail.
Os amigos e admiradores de Eduíno de Jesus ficamos a dever uma dívida muito grande a Onésimo Teotónio Almeida e Leonor Simas-Almeida, co-organizadores de Eduíno de Jesus: A Ca(u)sa dos Açores em Lisboa.
Francisco Cota Fagundes
University of Massachusetts Amherst
[1] Os dois parágrafos sobre as secções Memorabilia e Diário em e-mail apareceu no blogue Comunidades, coordenação de Irene Maria F. Blayer e Lélia Nunes. http://ww1.rtp.pt/inmblogs/rtp.comunidades/?k=ENCONTRO-COM-EDUINO-DE-JESUS-EM-PONTA-DELGADA-Francisco-Cota-Fagundes.rtp&post=1610, 29-10-2009.