EM MEMÓRIA DE EMANUEL FÉLIX
Vamberto Freitas
No dia em que Emanuel Félix faleceu todo um grupo de gente amiga acordou sobressaltada em várias partes do mundo. Os telefones não pararam de acordar uns e outros, os fusos horários perderam todo o sentido, a web tornou-se-nos numa fonte de lágrimas e, sim, de solidariedade uns para com os outros em memória do malogrado nosso amigo. Se os mortos são as sementes em busca de outra vida, habitantes de uma dimensão só sua, vedada a todos os outros, como disse o poeta em versos de quem já sentia saudade dos seus mas não temia a passagem inevitável para nós todos, a sua ausência ensina-nos quão frágeis somos todos, quão solitários num mundo desde os primórdios à deriva, sem qualquer sentido, feito tolerável por ideologias que vamos inventando numa tentativa de adivinhar a vontade de Deus ou simplesmente aplacar a nossa perpétua angústia. Sim, a divindade não pertence aos homens, mas só a eles cabe procurá-la, só a eles pertence o dever da busca incessante para que não pereçamos todos num holocausto de fogo interior, num holocausto de corações indiferentes à má sorte de outros, ou ao implacável destino de cada um de nós. Para que “servem” os poetas? Que sentido faz o que nos dizem desde sempre? Raramente nos ensinam, ou nos podem ou querem, ensinar alguma coisa, são os criadores de imagens e metáforas da nossa sobrevivência possível e da morte certa. Mas a vida na sua ausência seria impossível, nem o Homem nas cavernas foi capaz de os dispensar desde que começou a desenhar as metáforas da sua alma em pedras rochosas ou no abrigo de todos os seus medos. Os grandes poetas não foram sempre humildes, mas todos sabiam e sabem melhor do que ninguém que estamos, todos, perpetuamente em mar alto revoltoso, e que no fim ninguém vale mais do que ninguém. Eis a sua grande lição: vem aí a morte a qualquer momento, não vale a pena passar desta para outra dimensão arrependido de nada ou com vergonha do seu próximo. O resto será mero gozo ou o gosto por jogos da vida, que encurtecem os dias insuportáveis ou amenizam o medo da noite infinita.
Emanuel Félix cultivou esta sabedoria existencial durante toda uma vida, oferecendo-nos a lição de que a grandeza de alma e talento inato só podem resultar na solidariedade e na tolerância num mundo de igualdade e respeito mútuo absolutos entre todos os que merecem a dádiva da Vida e dos seus (também) imensos prazeres. Por entre a dor, vinha-lhe sempre o sorriso, por entre os versos de beleza incomensurável por qualquer teoria da literatura, era a história simples e esclarecedora das infindáveis contingências que espreitam a todos em toda a parte e circunstâncias. Ouvi-lo contar as suas histórias em qualquer serão era perceber de imediato que somos todos vulneráveis ao ridículo, que somos todos capazes de uma acto de loucura ou de pura bondade.
Para que “servem” os poetas? Para que “serve” a literatura? Para que “serve” uma vida? Para criar “comunidade”, para nos dizer que vimos de terra comum e que partilhamos este ou aquele modo de ser, para que nos sintamos quase atavicamente agarrados a um solo íntimo e familiar. Só os provincianos não entendem isto. Emanuel foi um poeta da açorianidade profunda, mas levou a sua geração a descobrir muito do mundo através de uma obra que dialogava com todo o à-vontade com as mais distantes e exóticas geografias humanas e artísticas. Disse-me um dia que não gostava nada quando se esqueciam que era um poeta profundamente enraizado na sua terra, uma terra, diga-se aqui enfaticamente, marcada muitas vezes pela pequenez de alma e mesquinhez social, pela inveja e pelo rancor de gerações ressentidas. Um dia ao avistarmos Angra de carro, vindos da Praia da Vitória pela via-rápida, ele disse como que só para si: “já me estou a sentir mal”. Ri-me, mas não lhe respondi. Como sou um perpétuo exilado, por opção e formação, não me comovem tanto assim os lugares, que sei perfeitamente serem realidades marcantes e símbolos vivos dos nossos gostos e desgostos. Mas Emanuel amava Angra e, apesar de tudo, as suas gentes. Faziam também parte do seu universo cosmopolita e ao mesmo tempo íntimo, tal como gostava de Nova Iorque, onde um dia me explicou pormenorizadamente, a meu pedido durante um passeio a pé, o que distinguia um edifício pós-modernista do restante labirinto arquitectónico, tal como gostava de Tulare, cidade rural e acolhedora na Califórnia, tal como gostava de Paris, donde trouxe, como sempre, as mais deliciosas histórias, tal como gostava de Ponta Delgada e de todos os seus amigos e admiradores desta nossa cidade. A sua lição deveria ser-nos permanente.
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Foi, já se sabe, por mera coincidência, que o SAAL-Suplemento Açoriano de Artes e Letras, que coordenei na revista SABER/AÇORES, dedicou a sua capa de Janeiro de 2004 a Emanuel Félix, com um ensaio de abertura da autoria de Fátima Freitas Morna, Professora de Literatura da Universidade de Lisboa. A ocasião foi a saída de Emanuel Félix: 121 Poemas Escolhidos, agora o seu testamento poético final, numa bonita edição das Edições Salamandra. Escrevi então que Emanuel Félix: “é o poeta angrense que simultaneamente mais fundo tem cavado e escavado as nossas raízes muitíssimo localizadas (ou referenciadas, melhor dizendo) na sua ilha e cidade natal, e mais ainda nos tem enquadrado nos vastos mundos das suas e nossas referências literárias e culturais, desde a Europa às Américas. Na Ilha Terceira, creio, foi dos primeiros poetas da sua geração a ter em atenção toda a literatura do mundo, privilegiando ‘chamamentos’ nos seus textos aos mais diversos escritores norte-americanos e europeus (…) Como tem sido largamente noticiado na Imprensa das ilhas, Emanuel foi muito merecidamente homenageado no arquipélago e em Lisboa pelo meio século de uma rica e consequente vida literária.”
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Publicado originalmente no SAAL (Suplemento Atlântico de Artes e Letras) logo após a morte do poeta a 14 de Fevereiro de 2004.
(*) O autor Vamberto Freitas,natural da Ilha Terceira (Fontinhas). Professor do Depto.Literatura e Línguas Modernas da Univ.dos Açores.Ensaísta e Crítico Literário.
(**) – A foto do poeta Emanuel Félix que ilutra o texto foi capa do SAAL-Suplemento Açoriano de Artes e Letras, da revista SABER/AÇORES,em Janeiro de 2004.
(***) – Reproduzo, o texto já publicado anterorimente, no aniversário de morte do poeta, dado a sua excelência.